domingo, 18 de setembro de 2011

ANOS DE CHUMBO: DEVANIR JOSÉ DE CARVALHO, TORTURADO ATÉ A MORTE


Para reconstituir a trajetória do bravo companheiro Devanir José de Carvalho, que o delegado Sérgio Paranhos Fleury premeditadamente torturou até a morte na  Era Médici, sirvo-me de um excelente relato do Cedema - Centro de Documentación de los Movimentos Armados -- Um exemplo de resistência e de luta da classe operária --, complementado por trechos do meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005).
"Mineiro, nascido no dia 15 de julho de 1943, na cidade de Muriaé, Devanir era filho de José Carvalho e Esther Campos de Carvalho e irmão de Derli, Daniel, Joel, Jairo e Helena. 

Na década de 1950, sua família, de origem camponesa, mudou-se para São Paulo, para a região do ABCD. Era a época do início da instalação das indústrias metalúrgicas e automobilísticas na região.

Juntamente com seus irmãos Derli, Daniel e Joel, com quem aprendeu o ofício de torneiro mecânico desde a adolescência, trabalhou nas indústrias da região – Villares e Toyota, entre outras. Em 1963, casou-se com Pedrina, com quem teve dois filhos: Carlos Alberto José de Carvalho e Ernesto Devanir José de Carvalho.

Em 1963, logo que se empregou, uniu-se ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, militou por reformas de base e participou de greves, passeatas operárias e outras formas de mobilização. Nesse mesmo ano ingressou no Partido Comunista do Brasil, no qual militou até 1964.
Depois do golpe militar, mudou-se para o Rio de Janeiro, devido às perseguições, e lá continuou sua militância na clandestinidade, trabalhando como motorista de táxi.
Em 1967, Devanir uniu-se à Ala Vermelha, dissidência do PCdoB... (que) partiu para a ação e foi o primeiro grupo a realizar ações armadas no Brasil, durante a ditadura militar, já no ano de 1968. Essas ações eram dirigidas pelo Grupo Especial Nacional (GEN), do qual participava Devanir Carvalho.

[Quando a Ala Vermelha decidiu mudar sua linha política, abandonando as ações armadas] O GEN não aceitou a reorientação e, saindo da Ala, criou o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT)...

Pequena, mas combativa e eficiente, já em dezembro de 1969, o MRT realizou ações armadas em conjunto com outros grupos guerrilheiros com os quais formou uma Frente (ALN, VPR e Rede). Foram assaltos simultâneos a dois bancos. Essa ação teve grande repercussão porque a ditadura militar vinha alardeando o 'fim do terror', após o assassinato de Carlos Marighella, ocorrido em novembro daquele ano." (Um exemplo de resistência...)

* * *

Devanir ajudou no sequestro de 
Nobuo Okushi, p/ salvar  5 presos
Em agosto de 1969, eu ("Júlio") estava à frente do setor de Inteligência da Vanguarda Popular Revolucionária em SP e o José Raimundo da Costa ("Moisés"), meu companheiro no Comando Estadual (responsável por contatos com outras organizações e pela assistência a grupos menores, inclusive do Interior), passou-me uma  batata quente:
"É tempo de situações complicadas para Júlio. Obrigado a uma viagem de última hora,  Moisés  lhe pede que cubra em seu lugar um ponto dos mais delicados: deve encontrar-se com Devanir José de Carvalho (Henrique), que acaba de escapar à bala de um cerco policial. O fato foi noticiado com algum destaque pela imprensa.

Combatente com mais de um ano de participação ininterrupta em ações armadas, Devanir é da mesma estirpe do  Bacuri: arrojado até a insensatez, tem uma trajetória marcada por sangue e mortes. Foi expulso pela direção da Ala Vermelha do PCdoB em meio a recriminações mútuas. Tem agora seu próprio grupelho e mantém relação de cooperação com a VAR.

— Um homem desses, que teve quatro irmãos presos pela repressão e conseguiu fugir mesmo depois de baleado, deve estar com os nervos à flor da pele — comenta  Júlio.

Moisés  lhe recomenda que se aproxime com cuidado, evitando gestos bruscos.
O encontro é numa manhã ensolarada de sábado, na rua Pamplona, proximidades da Avenida Paulista. Felizmente, tudo está tranqüilo. É uma região nobre da capital paulista e não há movimentações suspeitas que possam assustar Devanir.

Ele chega cauteloso, com o braço na tipóia. Olha interrogativamente para  Júlio, que está do outro lado da rua.  Júlio  abre um sorriso efusivo e atravessa, mantendo as mãos afastadas do corpo. Vai direto ao assunto:

— Companheiro, o Moisés viajou e eu vim no lugar dele. Vamos tomar um café?

Talvez por  Júlio  ter aparência inofensiva, Devanir não mostra nenhuma desconfiança. Acabam se dando bem.  Júlio  transmite o recado de  Moisés, marca o novo encontro e depois ficam meia hora jogando conversa fora. Devanir satisfaz a curiosidade de  Júlio  sobre o tiroteio:

— Nem sei como escapei, era tanta bala passando perto..." (Náufrago da Utopia)

* * *

 Meu encontro seguinte com Devanir foi casual... e providencial.

Consumado o racha no Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares, em outubro/1969, eu fui incumbido de expor aos militantes paulistas a posição dos que estávamos recriando a Vanguarda Popular Revolucionária, ao passo que o Antonio Roberto Espinoza apresentava as razões dos que preferiram continuar na VAR.

O del. Fleury também armou a cilada e
comandou a execução de Carlos Marighella
Acontece que a VPR, de imediato, não tinha  aparelho  nenhum em SP. Então, cabia à VAR me dar abrigo, provisoriamente. O que ela fez apenas pela metade:
"Júlio  estava provisoriamente instalado no aparelho de um companheiro residente na periferia. Era transportado de carro, sem olhar o percurso. De repente, num final de tarde,  furam  ponto  em que deveria ser apanhado. Depois, também o  ponto  alternativo. Ele compreende que foi abandonado.

O que fazer? Há boatos de que a repressão aprimorou o controle dos hotéis, mais vale não arriscar. Então, sem opção melhor, ele acaba voltando à velha Mooca — bairro que está evitando desde que saiu de casa, porque lá é conhecido demais.

Consegue guarida na casa de um ex-colega do MMDC, espírita convicto, que nunca concordou com as atividades revolucionárias. Numa emergência, ele socorre Júlio — mas, na manhã seguinte, logo cedinho, pede-lhe que vá embora, pois tem um irmão que é policial-militar e também mora lá. A presença de Júlio poderá causar-lhe sérios problemas.

Volta para o centro da cidade e fica a esmo. Lê jornais num parque, estica o quanto pode o almoço. À tarde, um golpe de sorte: dá de cara com Devanir!

Já restabelecido do tiroteio, Devanir agora lidera outra das pequenas organizações violentas, o Movimento Revolucionário Tiradentes. Ele oferece um  aparelho  para  Júlio  ficar até o dia seguinte, quando vai reencontrar o  Moisés.

Mas, não será tranqüila sua permanência. O MRT tem uma ação armada programada, os militantes saem de madrugada.  Júlio  sente que é seu dever oferecer ajuda, cordialmente recusada:
— Muito obrigado, companheiro, mas como justificaremos para a  VPR  se acontecer alguma coisa com você?

Não consegue dormir até a volta do grupo, claro. E eles chegam dizendo que saiu tudo errado e tiveram de alvejar os policiais de uma radiopatrulha. Um comenta que os dois cartuchos de .12 de sua garrucha atravessaram a porta do veículo:
— Foram pegar o policial lá dentro, acho que ele virou peneira...

Para piorar, temem que o  aparelho  seja descoberto (é relativamente próximo do local do tiroteio) e decidem abandoná-lo às pressas.  Júlio  fica novamente só, com um dia inteiro pela frente, até o ponto com Moisés, marcado para as 20h30". (Náufrago da Utopia)

* * *
Caído em desgraça com os seus, Fleury
sofreu acidente dos mais suspeitos
 "O MRT passou todo o ano de 1970 com a Frente, realizando ações armadas de expropriação e o seqüestro do cônsul-geral do Japão em São Paulo para obter a libertação de presos políticos.
No início de 1971, começou um processo de debates para formulação de sua linha política, mas a repressão se abateu pesada e dizimou seus principais dirigentes (Devanir Carvalho, Joaquim Alencar de Seixas e Dimas Antônio Cassemiro, inviabilizando a continuidade do movimento político-militar.

Por volta de 11 horas da manhã do dia 5 de abril de 1971, Devanir chegou à Rua Cruzeiro, n° 1.111, Bairro de Tremembé, em São Paulo, onde foi recebido pela polícia com uma rajada de metralhadora, que o deixou imobilizado.
Levado para o Deops, passou a ser torturado pelo delegado Sérgio Fleury e sua equipe. Foi assassinado por volta das 18 horas do dia 7 de abril de 1971.

Segundo a versão policial, Devanir foi morto em confronto com a polícia, mas o próprio delegado Fleury fazia questão de deixar claro que pretendia prendê-lo e levá-lo à morte por meio de tortura.
Esses avisos eram mandados pelos próprios irmãos de Devanir, que permaneceram presos de 1969 a 1970. Fleury dizia: 'Avisem ao Henrique (nome de guerra de Devanir) que encomendei nos Estados Unidos um bastão tranqüilizante para poder pegá-lo vivo e que serei eu, pessoalmente, que o pegarei no pau'.
A família de Devanir prefere aceitar a versão de que ele foi morto em confronto com a polícia: 'É melhor para nós. É muito difícil pensar que meu pai foi torturado até a morte', diz Ernesto, seu filho.

Celso Lungaretti

Um comentário:

  1. Muito bom. Visitem meu blog: http://salafehrio.blogspot.com.br/

    Lá, postei os links para um filme da década de 70, no qual entrevistam pessoas que passaram pelas mãos da repressão e foram torturadas.

    Abraço

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