Repressão à passetata em 1968: o pior estava por vir |
Virou lugar comum criticar a opção daqueles que pegaram em armas para lutar contra a ditadura. Com visão restrospectiva e experiência acumulada, é fácil deitar falação sobre as “ilusões armadas” e os equívocos trágicos da esquerda revolucionária. Mas é preciso ver as coisas em perspectiva histórica. Naqueles anos de chumbo, não estava claro, a não ser para o PCB, que a resistência armada levaria a esquerda ao desastre. Com o AI-5, as prisões e as torturas, a ditadura bloqueara qualquer alternativa de luta política legal. Também não se compreendia que o regime instaurado em 1964, repudiado nas ruas em 1968, lograra conquistar, a partir de 1970, a hegemonia sobre a “maioria silenciosa” do país, principalmente as classes médias, graças ao chamado “milagre brasileiro” – o crescimento econômico excludente. A sociedade estava anestesiada com o sonho de “Brasil grande” e a patriotada fascista do “ame-o ou deixe-o”. É certo que "a revolução faltou ao encontro”, para usar a expressão de Daniel Aarão Reis, mas isso só ficaria claro muito tempo depois. Não dá para analisar o passado exclusivamente sob a ótica do presente; não se faz a História pelo retrovisor.
O dia 17 de setembro marca os 40 anos do assassinato de Carlos Lamarca, ex-capitão do Exército que desertou para se tornar líder guerrilheiro. A simples menção de seu nome ainda desperta paixões inflamadas, principalmente nos quartéis, pelo fato de ele ter desertado e, durante o cerco à guerrilha do Vale do Ribeira, matado a coronhadas um tenente feito prisioneiro para evitar que ele denunciasse a posição dos guerrilheiros às tropas do Exército.
Oficial brilhante, Lamarca abandonou tudo – inclusive família, que despachou para Cuba – para aderir ao sonho de um punhado de jovens “enlouquecidos de esperança” de derrubar a ditadura e instaurar um regime socialista no país. O fato de os regimes que inspiravam os revolucionários serem ditaduras burocráticas degeneradas não invalida a generosidade e a coragem daqueles jovens que arriscaram suas vidas, muitos dos quais tombaram, para combater a opressão e a injustiça.
Lamarca começou na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e terminou no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Liderou ou planejou as ações mais ousadas da esquerda armada contra o regime, de assaltos a bancos ao roubo do cofre do ex-governador paulista Adhemar de Barros, ação espetacular que renderia à guerrilha US$ 2,5 milhões. Comandou o seqüestro do embaixador suíço, que livrou da tortura e da morte 70 prisioneiros políticos. O ex-capitão instalou um foco guerrilheiro no Vale do Ribeira, conseguindo escapar do formidável cerco militar montado pelo coronel Erasmo Dias – que nunca o perdoou por isso. Lamarca foi caçado implacavelmente pelas forças da repressão de todo o país, até ser emboscado e morto em 1971 no sertão da Bahia, numa ação comandada pelo então major Nilton Cerqueira.
O capitão Lamarca dá aulas de tiro a bancários |
Lamarca foi um herói trágico de seu tempo. Nas palavras de Emiliano José e Oldack de Miranda, autores de sua biografia, “não foi o ‘assassino frio e sanguinário’ mostrado na imprensa por pressão do Exército, muito menos um ‘messias sem deus’ ou joguete da esquerda armada. [...] O capitão Lamarca absorveu a tragédia de seu tempo e viveu o drama, todo, de um período em que a tortura e o assassinato político eram métodos considerados normais pelo Estado brasileiro. [...] Duro é sacar o lance do oficial do Exército brasileiro, carreira brilhante à frente, que, inconformado, rasga sua farda e aposta noutro futuro: sonha com a humanidade livre, mete o peito resoluto em busca da liberdade e leva às últimas conseqüências o que julgava acertado”.
Ele merece mais que respeito; merece estar no panteão dos herois da pátria. Porque herois verdadeiros não são estátuas equestres de bronze; são seres de carne e osso, com vícios e virtudes.
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