Por Lúcio Flávio Pinto
Foi sob o tacão do general gaúcho Emílio Garrastazu Médici o pior período do regime militar, os anos verdadeiramente de chumbo, entre 1969 e 1974. Sempre de óculos escuros, cara fechada e um cigarro pendente dos lábios, o ex-chefe do temido Serviço Nacional de Informações era a expressão da estampa do típico ditador latino-americano.
Não chegava a ser pessoalmente mau. Só que
tinha um defeito terrível: o da omissão.
Durante o tempo em
que o general Médici foi o presidente da república, os porões da ditadura ecoaram
os gritos provocados pelas torturas impostas aos inimigos do regime.
Indiferente a essa selvageria, Médici ia ao campo de futebol.
Sempre com um radinho
de pilha colado ao ouvido, torcia, dava opiniões e até interferiu na escalação
da seleção brasileira. Impôs ao treinador esquerdista do time, o jornalista
João Saldanha, o nome do atacante Dario, impetuoso e um tanto desastrado. Dadá Maravilha
ficou no time, Saldanha foi mandado embora.
Outro contraste da personalidade do terceiro presidente-general no poder a partir de 1964 estava na retórica. Na sede da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), em Recife, Médici leu um discurso poético e pungente. Declarava-se solidário com os retirantes nordestinos, massacrados por mais uma seca inclemente, daquelas que, segundo a lenda, a cada século devastava a região, como a de 1877.
O texto é uma das
mais bonitas orações ditas por um governante no Brasil. Seu autor, o então
coronel Octávio Costa (depois promovido a general, já em comando de tropa),
chefiava a AERP. Era uma assessoria direta do presidente com semelhança ao DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo de Getúlio Vargas, e
algumas tintas da propaganda nazista criada por Joseph Goebbels (autor da
famosa frase: uma mentira, repetida mil vezes, vira verdade).
Era preciso atender
as levas de sertanejos tocados do interior pela fome e a miséria, e que se
projetavam ameaçadoramente como vagas incontroláveis sobre as cidades do
litoral e as ricas propriedades rurais da Zona da Mata. Guardado o papel do
discurso, Médici ofereceu uma solução, em 1970: a Transamazônica.
Os nordestinos seriam
recrutados para construí-la como peões e também seriam assentados às suas
margens como colonos. Teriam trabalho, terra e renda. O governo de direita no
Brasil lhes atenderia com aquilo que seria a bandeira das massas russas
revoltadas contra o czarismo milenar, que, seis décadas antes, provocaram o
surgimento do primeiro governo socialista do mundo.
O nordestino
abandonado e maltratado, finalmente, se transformaria em dono do seu pedaço de
chão, livrando-se do proprietário explorador. Não na sua terra natal. Na
distante, desconhecida e misteriosa Amazônia.
Dois anos depois de
ter dado partida à grande estrada de penetração ao interior da fronteira
amazônica, Garrastazu Médici voltou a região, em fevereiro de 1973. Foi visitar
um grande empreendimento agroflorestal e industrial (arroz, gado, caulim e
celulose), o Jari, implantado pelo milionário americano Daniel Ludwig, com
todas as bênçãos do governo brasileiro, próximo à foz do rio Amazonas, entre o
Pará e o Amapá.
Deu-se o que parecia
impossível: dezenas de peões fizeram uma ruidosa manifestação de protesto
diante da comitiva presidencial, o que não acontecia nem nas cidades desde o
AI-5, do final de n1968.
Não houve tempo para
as assessorias — privada e oficial — impedirem a exibição de faixas e cartazes
diante do general carrancudo e de óculos pretos. A imprensa, mantida sob
controle em cubículos previamente delimitados, viu a cena, a fotografou e
registrou. A censura teve que se submeter ao fato consumado.
Havia então 12 mil
peões trabalhando nas obras do Projeto Jari, apenas um quarto deles vinculados
à empresa de Ludwig. Os outros eram recrutados por agenciadores de mão de obra,
os "gatos". Sem qualquer garantia social e, muitas vezes, sem
receber, trabalhavam pesado durante muitos meses, derrubando floresta, plantando,
construindo.
O governo teve que
providenciar alguma coisa para reparar aquela situação, que alcançou
repercussão internacional. Instalou um grupo volante para acompanhar as
condições de trabalho, semelhantes às dos escravos da colônia (e do império).
Até criou uma carteira de trabalho para atender o peão — mas só com parte das
garantias sociais do homem urbano.
A manifestação do
Jari não foi a primeira nem a última a traduzir a insatisfação contida e
reprimida do ser humano nas distantes e esquecidas frentes pioneiras. Quase
meio século antes, outros trabalhadores haviam feito um quebra-quebra bem maior
na empresa de outro americano, este ainda mais célebre: Henry Ford.
De sua sede em
Detroit, nos Estados Unidos, Ford impunha de tudo a quem trabalhava na sua
plantação de borracha no vale do rio Tapajós, no Pará, de onde esperava extrair
matéria prima para os pneus dos seus automóveis, que inundavam o mundo. Até a
comida.
No cardápio elaborado
por nutricionistas não constava a farinha de mandioca. Este, porém, era o item
que não podia faltar no prato do caboco. Como faltou, os nativos se insurgiram
e saíram destruindo o que encontraram pela frente. A farinha voltou. Mas
Fordlândia não foi longe. Em 1945 Ford jogou a toalha branca, desistindo de
produzir borracha em larga escala na Amazônia, 18 anos depois de se instalar na
região.
Mais cinco décadas à
frente, uma nova rebelião de milhares de trabalhadores ocorreria na maior obra
que estava em andamento no Brasil na passagem dos anos 1970 para os 1980: a
hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins.
A comida servida nos
refeitórios coletivos era ruim. Certo dia ficou insuportável. A carne foi
amolecida à base de muito bicarbonato. Era colocá-la no prato e deixá-la de
lado. Revoltados, os peões começaram a destruir o restaurante e a avançar sobre
outros pontos do acampamento.
Centenas de homens da
Polícia Militar foram transferidas às pressas de Belém para conter a rebelião.
A comida então melhorou. Tornou-se pelo menos suportável. Nada, contudo, que
nem de longe pudesse ser comparada ao menu oferecido para o staff das
obras.Lado a lado, padrões de vida sueco e biafrense.
Novas revoltas ocorrem agora nas
grandes obras da Amazônia. Não mais apenas na forma de explosões súbitas e de
curta duração, como antes. Essas modalidades, mais violentas, se combinam com
greves, antes praticamente impossíveis. É a continuidade de uma história
marginal. Mas é também uma novidade, que precisa ser mais bem registrada e
adequadamente entendida.
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