'Ao Pé do Muro' traz relato biográfico do terrorista italiano, controverso na direita e na esquerda, que se abrigou no País.
Por Marcelo Rubens Paiva
Sonhado de cara para a parede, a cidade se queima, diz a
música De Cara a La Pared, de Lhasa de Sela. Lembra o exilado que deu um
nó na Justiça brasileira, francesa e italiana, o geógrafo italiano
Cesare Battisti.
Battisti deixa a penitenciária de Papuda, em Brasília
Caçado como terrorista internacional sob o peso de três
assassinatos nas costas, encosta o rosto nas grades da sua cela da
Papuda, Brasília, para, metodicamente, bronzear primeiro o perfil
direito, depois o esquerdo, dar um tempo nos 32 anos de fuga e observar o
voo de um pássaro branco, enquanto seus companheiros de presídio jogam
cartas ou participam como torcedores dos conflitos de uma telenovela.
Assim começa a narrativa do fruto das “férias forçadas”. O livro
Ao Pé do Muro é
um curioso relato biográfico sobre como o estrangeiro vê o Brasil e,
lógico, como chegou ao País cujo próprio presidente, Lula, negou sua
extradição já decidida pelo STF para a Itália, onde foi condenado à
prisão perpétua sem direito ao sol, causando um imbróglio diplomático.
Dois anos depois, a corte suprema brasileira o liberou dessa
prisão, dando tintas de nonsense ao roteiro já difícil de entender.
Battisti é um debate vivo que incomoda, deixa dúvidas por onde
passa, ciente de que foi “um tolo em construir emoções fundadas em mitos
mortos”. Chegou o momento de estar contra a parede (encurralado).
Entrou no presídio com status de personagem de filme de ação. Mexeu com a fantasia dos presos; um gringo de olhos gelados associado a Bin Laden.
Aos poucos, a convivência decepcionou. É um “fracote” que ganhou
a simpatia de ladrões, traficantes, pistoleiros, que o veem como apenas
mais um a dividir a monotonia da prisão e os absurdos. Como a proibição
de espelho e fósforo, o ataque de agentes penitenciários nas revistas, e
o surto de um colega, JJ, que colocou fogo no colchão pois precisava de
luz, já que “não conseguia mais se ver”.
Diferentemente de outros, o “gringo” não se empolga pelas
discussões sobre futebol. Vive nas lembranças de um Rio de Janeiro que
conheceu pelo avesso - um morro dominado por uma facção criminosa, Morro
da Coroa, nos braços de uma companheira que não admitia que uma relação
a dois não se traduzisse em casamento; lá da sua janela via as idas e
vindas de compradores de drogas, dos garotos com Kalashnikovs e a
movimentação da PM.
Battisti é uma figura controversa na direita e esquerda. Viveu
as agitações estudantis de 1968 e partiu para a luta armada numa Itália
em ebulição como membro dos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC),
organização marxista clandestina de operários, bem menor que a mítica
Brigadas Vermelhas que sequestraram e mataram o líder democrata-cristão
Aldo Moro, numa ação estúpida e emblemática, que isolou de vez a
esquerda radical, simbolizou a morte das utopias e provou a necessidade
de se recriar uma esquerda aliada à democracia.
Aldo Moro no cativeiro |
A PAC, como muitas organizações da época, perdeu o sentido da
luta. Assaltava para garantir o sustento dos militantes e foi acusada de
assassinatos: um agente penitenciário que maltratava presos, um agente
policial e um simpatizante do fascismo, cujo filho, com 13 anos de idade
na época, ficou paraplégico e hoje milita pela extradição de Battisti.
O grupo deixou de existir em 1979. Depois da morte de Moro,
Battisti abandonou a luta armada. Então, começaram suas três décadas de
uma vida pautada pelo caos, tema das suas narrativas.
Preso na Itália em 1979, escapou em 1981. Viveu clandestinamente
em Paris. Depois, México, onde escreveu seu primeiro livro. Voltou
“anistiado” para a França de François Mitterrand e fugiu antes de ser
extraditado pelo governo Chirac de carro para a Espanha, Portugal, Ilha
da Madeira, Ilhas Canárias e, finalmente, Fortaleza e Rio, cidade que
não entendia no começo; desprezava os cariocas obcecados pela vaidade
corporal, “cujo valor da vida tem ligação direta com a intensidade
emocional de um só instante”.
Hoje, ele se apresenta como ex-combatente. Já lançou 15 títulos.
Ser Bambu e Minha Fuga Sem Fim, ambos publicados pela Martins Fontes, são dos poucos traduzidos no Brasil. Outros fizeram sucesso na França, como L’Ombre Rogue e Terres Brulées,
livros inspirados em romances policiais (noir) que, como bons
thrillers, não fogem do debate político, já que o crime prova a
irracionalidade do sistema.
Em 2007, foi pego no Rio numa operação conjunta da Interpol.
Quase foi trocado pelo ex-banqueiro Salvatore Cacciola, preso em Mônaco.
Salvatore Cacciola |
Neste vaivém, duas mulheres, duas brasileiras, Áurea e Janaína
(“um excesso de paixão e liberdade”), muita paranoia, inclusive das
amantes, estado de quem precisava sempre fugir: “Já cheguei seriamente a
pensar, sem nenhuma intenção de diminuir os homens, que as mulheres
dizem a verdade até quando estão mentindo. Isso vale tanto para o amor
como para a guerra...”
Battisti acha desonesto e irreal quando atribuem a ele o título
de escritor. Mas é. “Para mim, os escritores são todos uns mentirosos;
os maus sabem disso, e os bons desconhecem”, diz o personagem Zeca,
xerife da cela, que vivia com uma Bíblia sem capa; normas de segurança.
Cesare Battisti não é herói nem anti e espera agora ter chegado
ao fim da sua caçada. Continuará a ser uma das figuras mais controversas
da década em que transformou utópicos jovens em terroristas isolados.
Explodiam estações de trem, pubs, carros-bomba, matando por um ideal de
uma maneira deturpada. Porém, sua condenação na Itália também é
suspeita, já que ocorreu graças a denúncias premiadas de
ex-companheiros. A literatura é a chance de redenção e continuar
lutando, sem derramar sangue.
O Estado de S.Paulo
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