sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O AFFAIR MONTEIRO LOBATO


Nesta postagem do Paulo Moreira Leite, uma análise sobre a questão do racismo nos livros de Monteiro Lobato que não cai na armadilha da simplificação maniqueísta. Esta simplificação pretende opor censura x liberdade de expressão, mas acaba evitando a discussão do cerne do problema, que é nossa vergonhosa herança colonial-escravista.    

Racismo entre nós

Paulo Moreira Leite, em seu blog

Eu já não era tão jovem quando se dizia que a melhor definição de bobo era do sujeito que não consegue mascar chiclete e andar ao mesmo tempo.
Acho que isso se aplica ao debate sobre Monteiro Lobato. É nosso maior autor infantil. Deixou uma obra densa e complexa, com várias contribuições  ao entendimento do país. Mas Lobato era um autor racista e isso não pode ser escondido nem disfarçado. Precisa ser reconhecido e discutido pelos brasileiros, num sinal de respeito por nossa história e pelas vítimas de uma atitude que nossa Constituição define com crime inafiançável. Creio que devemos esse favor às futuras gerações, já que pouco podemos fazer pelas passadas, além de realizar um esforço para conhecer e estudar as dores do  tempo em que viveram.
O racismo de Lobato aparece para crianças, quando ele fala do “beiço” de Tia Nastácia, de sua “carne preta” e chega a dizer que ela subia numa árvore como “macaca de carvão.” O racismo para adultos foi explicitado em sua correspondência privada. Em cartas, ele admitiu que sentia inveja dos norte-americanos porque  tinham sido capazes de formar uma organização como a Ku Klux Klan, associação terrorista que sequestrava, torturava e enforcava negros no Sul, como uma vingança pela abolição da escravatura.

Monteiro Lobato admirava o Ku Klux Klan
(Observação minha, Cláudio Camargo: para quem tem dúvida, basta ler o que Lobato escreveu sobre o KKK: “Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”). 
Este aspecto da obra de Lobato é horrível e inaceitável, mas não é um traço pessoal do autor. É expressão do Brasil daquela época. Aprendi com Edward Said, um dos grandes autores de nosso tempo, indispensável para entendermos outro tipo de preconceito – contra povos árabes – que nenhum homem está 100% livre dos atrasos mentais de sua época. Estamos condenados a carregar, por herança familiar e social, as mazelas de nossa cultura e nosso meio. Podemos nos considerar felizes quando somos capazes de reconhecer e nos  emancipar de parte deles, em vez de apenas reproduzir e fortalecer as forças daninhas que foram interiorizadas em nossa formação. Mas ninguém é 100% livre de seu passado.
Fingir que o racismo não existe e denunciar toda reação como patrulha politicamente correta é um ato simplista, de quem se esconde atrás da liberdade de expressão para manter a discriminação e o preconceito.
Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato
Quando Lobato escreveu muitos de seus livros infantis, a escravidão fora abolida há apenas 50 anos. Os antigos escravos eram marginalizados, discriminados e segregados.
Sem resposta aceitável para uma situação aberrante e vergonhosa, a cultura oficial brasileira daquela época olhava para estes brasileiros e tudo aquilo  que representavam como uma visão de superioridade – racismo. Era uma fora de jogá-los para fora da história. Sofriam porque mereciam. A escravidão, no fundo, era justa. Civilizava o negro, dizia outro grande escritor, José de Alencar, adversário empedernido da abolição, mesmo em 1888. A ciência explicava as raças e, com elas, as diferenças entre os homens, dizia o racismo científico que inspirava outro grande autor, Euclides da Cunha.
Num momento posterior, tentou-se adotar uma outra visão sobre essa condição do negro. A de que vivíamos numa democracia racial, onde todos eram iguais e não havia preconceito em função da cor da pele. Hipocrisia organizada, a ideologia da democracia racial atingiu um ponto maior de sofisticação a partir de um silogismo maroto. Já que os homens de ciência não reconhecem raça como um valor científico, biológico, e os homens são animais que acreditam na ciência, o racismo simplesmente não pode existir. Logo, quem denuncia o racismo fala de um fantasma.
Sabemos que tem gente que se julga muito inteligente e ganha a vida repetindo isso. 
Coisa de quem não sabe conviver com duas ideias diferentes. Racismo está na cultura, nos livros, no pensamento e, como vimos, em Monteiro Lobato. O porteiro da balada que cria dificuldade para deixar um negro entrar não tirou nota 10 em biologia, certo?
Gilberto Freyre: o racismo cordial?
Se você for honesto pode encontrar racismo até na obra de Gilberto Freyre, que não queria ser racista e  condenava o racismo quando era capaz de enxergá-lo – o que não acontecia sempre, como nós sabemos, a partir da regra de que ninguém zera sua herança cultural ou ideológica.   Freyre chega a atribuir o temperamento, a inteligência e outros traços de um indivíduo ao fato de ser descendente de branco, negro ou indígena. Dizia, por exemplo, que o negro possuía uma “energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical,” sugerindo que isso explicava que fosse usado no trabalho duro do engenho. Comparando populações brasileiras, Freyre dizia que o caráter “alegre, expansivo, sociável, loquaz” dos brasileiros nascidos da Bahia, devia-se ao elemento “negróide” de sua constituição, em contraste com populações “tristonhas, aladas, sonsas e até sorumbáticas” de outros Estados, que seriam “menos influenciadas pelo sangue negro e mais pelo indígena.”

É esta herança que devemos debater, discutir e impedir que seja retransmitida às novas gerações.
Eu acho, por isso, que o racismo da obra de Lobato deve ser exposto e colocado, em sala de aula, nas conversas de pais e filhos e toda vez que uma criança passar por aquelas palavras horríveis, deprimentes – mas que, nós sabemos, fizeram parte da experiência de homens e mulheres de uma época.
Sou contra proibir uma obra de Lobato – e também seria contra proibir O Mercador de Veneza, de Shakespeare, com várias passagens contra judeus, sucesso absoluto junto a certo público na Alemanha nazista — embora eu entenda a indignação de quem teve essa ideia.
Entendo porque é humilhante ser ofendido e ouvir, como resposta: que pena, deve ser assim mesmo porque afinal de contas a Constituição garante a liberdade de expressão.
É verdade. Mas a Constituição garante, também, o respeito à dignidade de cada cidadão – e o racismo é uma forma brutal de ataque à dignidade.
Minha opinião é que cabe ao Estado, num país que teve a coragem de colocar o combate ao racismo na própria Constituição, ser coerente com seus princípios e tomar a iniciativa de combater o racismo aonde ele se encontra. Não vale esconder nem fingir que não existe.
É por isso que sou favorável à ideia que as edições de Caçadas de Pedrinho sejam acompanhadas de uma nota explicativa capaz de situar Lobato e seu tempo. Este debate deve ser feito, irá formar crianças e jovens melhores. É um dever com todos brasileiros. E não vai alterar num único milímetro a obra original.

Um comentário:

  1. O racismo é uma deficiência de quem não enxerga a beleza das cores da natureza, como um cachorro que só encherga o preto e branco.O racista portanto é um deficiente que precisa de ajuda para enxergar. E se recusa a enxergar se enquadra na máxima de JESUS CRISTO QUE DIZIA: " o PIOR CEGO É AQUELE QUE NÃO QUER ENXERGAR!... Portanto é um desprezível sem direito a acusar ninguém de ser racista por o desprezar!...

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