quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A JUSTIÇA É CEGA E SÁBIA?

Nas sociedades modernas ocorre às vezes a chamada “judicialização da política”, um fenômeno que geralmente se manifesta quando o Executivo extrapola seus poderes; neste caso, o direito é invocado como corretivo não da política em si, mas de seu desvio autoritário, mais especificamente, da negação do princípio da tolerância. 
Mas, outras vezes, como está ocorrendo no caso do julgamento do “mensalão”, a Justiça se arvora em árbitra suprema e substituta da política como forma de resolver os conflitos numa sociedade democrática.

Supremo político

Por Lincoln Secco, especial para o Viomundo

Guilherme Marechal
Conta-nos George Duby que no século XII o cavaleiro Guilherme Marechal descobriu uma jovem dama e um monge em fuga. Ao saber que se dirigiam a uma cidade para empregar seu dinheiro a juros, ele ordenou a seu escudeiro que lhes retirassem o dinheiro. Para ele aquilo não era roubo! Ele não tocou na jovem, não impediu que continuassem e nem lhes tomou a bagagem. Nem mesmo quis ficar com o dinheiro tomado pelo escudeiro. É que para a moral da cavalaria o metal era vil, a acumulação desonrada e a usura um pecado.

Ninguém nos dias de hoje concordaria com aquele “Direito Medieval”. Todo o Direito corresponde ao seu tempo e à leitura política que predomina numa sociedade.

No caso do Supremo Tribunal Federal, a sua natureza política se torna quase transparente. É que os juízes do STF não fazem concurso, eles são indicados. A Constituição garante ao Presidente da República e à maioria que ele constitui no Senado Federal, o poder de interferir na sua composição.

Dessa forma é dever constitucional do presidente nomear pessoas que estejam de acordo com a correlação de forças políticas que a população livremente estabeleceu pelo voto. Quando Fernando Henrique Cardoso foi eleito, ele nomeou juízes que estavam afinados com o seu projeto liberal de privatizações. Nomeou pessoas que deveriam criar o ordenamento jurídico dentro do qual ele ergueu o modelo econômico escolhido pelo povo. Caberia aos juízes inviabilizar questionamentos que duvidassem das privatizações, por exemplo.

Em 2002 o povo escolheu um novo modelo de desenvolvimento oposto ao anterior e era esperado do presidente que nomeasse para o STF juízes que calçariam a sua opção pelo social com uma segurança jurídica mínima que impedisse ações contra sua política de cotas ou seus programas de transferência de renda, por exemplo. Mas, ao contrário de FHC, Lula seguiu uma interpretação errônea do que seria a República.

O STF tenta substituir a política como mediadora dos conflitos
Ocorre que se o STF não é politizado pelo presidente ele o é pela oposição. É que o Direito não é só um conjunto de fatos ou normas, como rezam os positivistas, mas a expressão de uma relação de poder. Se um lado hesita em exercê-lo o outro o fará. Nada disso atenta contra a Democracia. Esta é apenas a forma de um domínio encoberto pelo consenso da sociedade. A violação do direito ocorre se um dos lados usa a força e se põe fora da legalidade.

Até ontem, o consenso jurídico era o de que na dúvida prevalecia a absolvição do réu. Cabia ao acusador fornecer a prova, e não o contrário. Provas não podiam ser substituídas pela crença espírita de que uma pessoa devia necessariamente conhecer determinado fato. Todo cidadão tinha o direito de ser julgado em mais de uma instância.

No século XIX havia escravos que iam às barras do tribunal para requerer a liberdade alegando que teriam ingressado cativos no Brasil depois da proibição do tráfico. E quando perdiam num Tribunal da Relação, podiam recorrer até a última instância, embora a nossa mais alta corte defendesse a escravidão.

Olga Benário, vítima do STF
No Estado Novo esta mesma corte autorizou a entrega de uma judia comunista para morrer nas Câmaras de Gás de Hitler. Esteve dentro da estrita legalidade de uma ditadura. Em 1988 recebemos um ordenamento jurídico resultante da luta contra o terrorismo de Estado que imperou no Brasil depois de 1964.

A condenação de José Dirceu mostra que o consenso de 1988 mudou. Doravante, empresários, políticos e lideres de movimentos sociais terão grande dificuldade de se defender no STF.

A não ser que o julgamento tenha sido de exceção!

Neste caso, tudo voltará a ser como antes. Mas então a ilusão que a esquerda acalentou na democracia será posta em causa e ela poderá se voltar aos exemplos tão temidos pela oposição, como a Argentina, a Bolívia, o Equador e a Venezuela.



Lincoln Secco é professor do Departamento de História da  Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

2 comentários:

  1. o Blogue esta cem por cento de Parabéns pelo post. Essa matéria me faz lembrar a situação do grande jornalista, Lúcio Flávio Pinto, que foi politicamente emparedado pelo judiciário Paraense onde responde por 18 processos ativos no fórum da capital, quando foi obrigado a cumprir uma espécie de prisão domiciliar,mesmo não decretada.Essa matéria aqui publicada tem um valor histórico,uma vez que,expõe, escandalosamente, uma tendencia de ingerência política por um poder que deveria preservar seus limites. No caso do jornalista Lúcio Flávio Pinto,os autores das ações sequer contestaram publicamente o que o autor publicou em seu pequeno 'Jornal Pessoal' nem pediram direito de resposta sobre aquilo que os teria ofendido. Os poderosos, por terem influencia, apenas pura e simplesmente recorreram á justiça da terra,acusando-o de crime de imprensa,tudo para fugir do enfrentamento que os levaria a julgamento por parte da opinião pública.
    A justiça paraense,definitivamente é cega.

    Antônio Celso Morais e silva - Brasília,DF

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  2. Tem gente aqui no Pará que não honra a boa tradição da antiga justiça e faz o jogo do poder.Tem magistrado que perdeu a noção do seu papel e envergonha sua classe. Triste constatação. Blog de primeira, matéria de primeira.Parabéns.

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