O militante antiapartheid Ronni Kasrils, judeu, sul-africano e comunista |
Formado na melhor tradição humanista e socialista do judaísmo,
Ronni Kasrils nasceu na África do Sul, se tornou comunista e militante
antiapartheid, dirigente do Congresso Nacional Africano. Com a vitória do CNA
em 1994, Kasrils foi ministro de Mandela. Nesta entrevista ele compara as
práticas do Estado de Israel em relação aos palestinos ao apartheid – regime de
supremacia branca que vigorou na África do Sul.
Herói judeu e ministro de Mandela defende o “fim do apartheid de
Israel”
Ronni Kasrils diz que “política de terrorismo de Estado de Israel
é ainda pior do que a dos racistas sul-africanos”
Por Leonardo Wexell Severo, no site da CUT
Em seu “Livro das perguntas”, Pablo Neruda indaga: “Por que as
árvores escondem o esplendor de suas raízes?”. E como se respondesse à
inquietação do poeta chileno e ignorasse a minha pergunta, Ronnie Kasrils,
sul-africano de pais judeus de origem russa, nascido em Joannesburgo, veterano
militante da causa antiapartheid e ex-ministro de Nelson Mandela, iniciou a
entrevista exclusiva mostrando o longo caminho percorrido até o Fórum Social
Mundial Palestina Livre em
Porto Alegre.
Da mãe, “doce, solidária e humanista”, aprendeu que a segregação a
que os negros eram submetidos na África do Sul, com suas mais variadas formas
de abuso e violência, “era o mesmo tipo de veneno imposto aos judeus na
Europa”. Seu pai, um caixeiro viajante, vendedor de balas e doces para as
segregadas e miseráveis comunidades negras, logo se converteria numa das
principais lideranças sindicais da África do Sul. Desta combinação surgiu a
indignação e o desejo da mudança. Daí até a militância clandestina, estimulado
por uma prima comunista, foi um passo. A pele branca caiu como uma luva para as
necessidades do movimento antiapartheid, até que foi banido de falar em
público, de ir às fábricas, de reunir-se com mais de três pessoas e,
finalmente, ficar desempregado. “A partir de então os racistas me deixaram com
todo o tempo livre para me dedicar à luta contra o apartheid sul-africano”.
Por sua luta, Ronnie Kasrils foi reconhecido como “herói judeu”,
título cassado após ter se pronunciado “contra o apartheid de Israel”.
Dirigente do Congresso Nacional Africano (ANC), Ronnie esteve reunido com Che
Guevara, participou ativamente ao lado de vários combatentes pela libertação do
Continente, como Agostinho Neto, de Angola, e Samora Machel, de Moçambique, e
foi ministro de Nelson Mandela. “A política de terrorismo de Estado de Israel é
ainda pior do que a do apartheid sul-africano, pois o regime de segregação
racial não cercava os bantustões – locais onde os negros eram concentrados e
apartados da sociedade branca – nem os bombardeava com mísseis. Israel ergue
muros e pratica crimes diariamente, covardemente, sem trégua, contra idosos,
mulheres e crianças. Como disse certa vez um comandante militar israelense ao
ver as barbaridades praticadas contra a aldeia de Deir Yassim, Israel está
repetindo os nazistas”.
No auditório da Fecosul, Ronnie debaterá
na próxima sexta-feira (30) sobre a Luta Palestina Anti-Apartheid – desafios,
modelos e estratégias para a paz justa.
Abaixo, trecos da entrevista, que contou
com a colaboração de Leonardo Vieira
.
Como foi a sua participação na luta contra
o apartheid na África do Sul?
A luta política contra o apartheid era
pela não-violência, até que em março de 1960 um protesto pacífico em frente a
uma delegacia de polícia foi banhado em sangue. O massacre deixou 69 mortos e representou
um divisor de águas. Diante da brutal violência e repressão, discutimos que não
havia outro caminho se não a resistência armada. Mandela me indicou como membro
do comando de Durban e iniciamos ações que tinham como alvo os símbolos do
apartheid, como os “Escritórios de classificação” onde os negros eram
catalogados.
Catalogados de que forma?
Os racistas tinham 14 classificações
diferentes para distinguir a inferioridade das raças. Iniciava pelo europeu e
ia até o bantu, o mais negro de todos. Se uma pessoa dissesse que era branca
eles olhavam as unhas, os dentes, como os nazistas faziam. Se um imigrante
viesse do Líbano, devido à colonização europeia, era classificado como branco,
se viesse da Síria era “de cor”. Atacávamos estes escritórios de classificação
com uma regra: nunca matar ninguém. O objetivo era colocar abaixo os símbolos
da opressão e do racismo. Isso inspirou muita gente a lutar e serviu como
alerta ao regime de que era preciso mudar.
[...]
Fazendo um paralelo com o momento da
derrubada do apartheid na África do Sul, como vê o papel da solidariedade
internacional contra a política de terrorismo de Estado e segregação levada a
cabo pelo governo de Israel?
O movimento antiapartheid nos deu um
tremendo apoio e impulso em vários momentos em que a situação interna estava
extremamente complicada. Foi uma contribuição inestimável para enfraquecer e
isolar os racistas, pois unia gente de todas as origens e classes. Vale lembrar
que era um Estado muito poderoso, com mais de cinco milhões de brancos. Nenhuma
colônia teve tantos brancos, com raízes no país há muitos anos, grande Exército,
economia industrial com abundantes recursos minerais. E os Estados Unidos e a
Europa como defensores, com Ronald Reagan e Margaret Thatcher à frente. Ao
mesmo tempo, os negros eram submetidos à pobreza mais abjeta, à ignorância
profunda, com o regime estimulando a divisão por tribos para melhor manipular.
Se você fosse mestiço ou indiano já era capataz, era assim que funcionava.
Diante deste quadro interno, a solidariedade trazia esperança.
Neste momento, a adoção de uma política de
boicote, desinvestimento e sanções não seria um caminho natural para chamar o
governo israelense à razão?
Acredito na efetividade do boicote quando
ele chega no bolso, pois é onde dói, ajudando as pessoas a abrirem os olhos e
potencializar a resolução desta situação insustentável. Com o boicote e as
sanções, os acadêmicos israelenses que se sentem naturalmente orgulhosos de
suas conquistas repensarão o alto preço pago pelos palestinos. Se houver
boicote de armas e sanções militares, estará minada a capacidade de agressão de
Israel.
[...]
O que sentiste ao visitar os territórios
ocupados por Israel?
Tanto em Gaza quanto na Cisjordânia senti
uma espécie de dejà vu,
era como se estivesse de volta ao regime de apartheid. Na verdade, o que é
feito contra os palestinos é ainda pior do que o apartheid sul-africano. Porque
por mais brutal que fosse o regime, na África do Sul não se bombardeavam os
bantustões, nunca houve o uso de helicópteros, mísseis e tanques. Nas
operações, os racistas quebravam portas, prendiam, torturavam, mas isso durava
duas semanas, nunca indefinidamente, como acontece na Palestina. Estive em 2004
com Yasser Arafat na sede da presidência da Autoridade Nacional Palestina (ANP)
em Ramalah e ele me disse “não está vendo o meu bantustão?” Eu respondi que
aquilo não era um bantustão e todos me olharam assombrados, como seu eu tivesse
relativizando a gravidade da situação. Mas logo eu respondi que o local era
pior do que um bantustão, porque eles nunca foram bombardeados nem nunca houve
muros ao seu redor.
Uma segregação sem limites...
Qualquer ser humano de bom senso se sente
extremamente chocado com tamanha selvageria. A situação é ainda mais
impressionante quando tais crimes são reproduzidos por pessoas descendentes dos
que sofreram o holocausto. Minha mãe, sempre muito doce, me ensinou os valores
da vida e diante do que via sendo feito com os negros sul-africanos dizia que
as pessoas, quando são submetidas a uma lavagem cerebral, se tornavam nazistas.
Quando viu as crianças palestinas assassinadas na aldeia de Deir Yassin, em
1948, Cizling, um chefe israelense, disse: “Agora nos comportamos como
nazistas”. É inadmissível que alguém com origem judaica perverta desta forma os
ideais humanistas e passe a agir como monstro, praticando punições coletivas.
[...]
Da mesma forma que Estados Unidos,
Inglaterra e Israel se alinhavam na ONU para blindar o regime de apartheid da
África do Sul, hoje os EUA e a Europa Ocidental se empenham na defesa dos
crimes do Estado de Israel. Qual a sua leitura sobre isso?
O interesse econômico e geopolítico
explica as razões de tamanho apoio dos EUA e dos países da Europa Ocidental,
mas os israelenses têm de repensar essa dependência total, porque o mundo está
mudando. Israel é muito pequena dentro de um mundo árabe enorme. Será melhor
para todos que o governo de Israel saia deste jogo perigoso e busque uma
convivência harmoniosa com a região.
Começou a contagem regressiva para o final
do apartheid de Israel?
Atualmente converso com ministros do tempo
do apartheid na África do Sul e pergunto: o que te fez mudar? E um ministro
muito importante me respondeu que havia sido quando o banco Barclay, da
Inglaterra, anunciou que iria sair do país. Então, disse ele, é o fim pra mim,
não tem mais jeito. O início do fim ocorreu portanto quando o banco do
colonialismo inglês, sofrendo as intensas pressões internas, com as
mobilizações, e internacionais, com a onda de solidariedade, após 200 anos,
deixou o país. Isso ajudou a mudar a corrente de opinião.