quarta-feira, 6 de março de 2013

CHÁVEZ ALÉM DOS CHAVÕES

Salvador Dalli, A tentação de Santo Antonio 

A América Latina não é para principiantes. Essa frase, ou algo parecido, me foi dita há uns 15 anos por um colega argentino quando ambos estávamos na Colômbia cobrindo uma crise que ameaçava o então presidente Ernesto Samper de impeachment. Esse colega, o jornalista Pablo Biffi, do Clarín, dizia que um gringo cartesiano jamais conseguiria entender um fenômeno tipicamente latino-americano como o peronismo – por supuesto! –, em que um líder militar simpatizante do fascismo traz a classe operária ao centro da vida política do país e ganha o ódio eterno dos conservadores e da classe média argentina. “A América Latina é Macondo”, disse ele, lembrando a cidade símbolo do realismo fantástico do romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez.


O exemplo do meu colega me veio à mente agora com a morte de Hugo Chávez Frías. Ele, definitivamente, não é um personagem fácil de ser enquadrado nos clássicos manuais de política, embora tanto seus detratores quanto seus apoiadores insistissem em encerrá-lo em modelitos pré-concebidos – “populista” e fanfarrão, para os primeiros; “bolivariano” e progressista, para os segundos. O buraco é mais embaixo, como veremos. 


O tenente-coronel Hugo Chávez em 1992
Chávez ganhou notoriedade internacional em fevereiro 1992. Animado por ideias nacionalistas e vagamente esquerdistas, o então tenente-coronel paraquedista do Exército tentou dar um golpe militar contra o então presidente Carlos Andrés Pérez, da Acción Democrática. Pérez tinha sido um dirigente nacionalista no primeiro mandato, nos anos 1970; mas ao voltar ao poder, em 1989, enfiou goela abaixo dos venezuelanos a amarga receita do FMI para enfrentar a crise econômica. O resultado foi o “Caracazo”, revolta popular cuja repressão provocou mais de 300 mortes.

Caracas, símbolo dos contrastes latino-americanos 
Quando Chávez foi eleito presidente da Venezuela, em 1999, o país tinha cerca de 70% da população abaixo da linha da pobreza. Quem conheceu Caracas sabe que a cidade expressa arquitetonicamente a secular fratura latino-americana: uma metrópole cortada por viadutos e autopistas – a modernidade – cercada de morros apinhados de favelas por todos os lados – o “atraso”. Um país nadando na riqueza do petróleo com tal iniqüidade é retrato acabado do reacionarismo das oligarquias que há 500 anos dominam a região. Chávez instituiu programas sociais que, a exemplo do que ocorreu no Brasil desde a ascensão de Lula, redistribuíram a renda nacional pela primeira vez na História do país. Não é à toa que Chávez é adorado pelos setores mais pobres da população. Que essa redistribuição não tenha sido feita de maneira a fortalecer a autonomia dos movimentos sociais e partidos populares é outra história. Mas não dá pra negar essa transformação.

O lado autoritario e messiânico....
Claro, como militar imbuído de um certo messianismo, Chávez teve rompantes autoritários. Várias vezes ele tentou cercear e descaracterizar a oposição. Mas é preciso lembrar algumas coisas: primeiro, foi a oposição, representada por empresários, militares, burocracia estatal e a grande mídia, que rompeu a legalidade ao tentar dar um golpe de Estado em 2002, com aberto apoio dos Estados Unidos. Já Chávez ganhou democraticamente todas as eleições e plebiscitos – à exceção de um – realizados sob seu governo. Todos abalizados por observadores internacionais, inclusive Jimmy Carter. Finalmente, quando a mídia venezuelana esperneia contra o que seria uma tentativa do chavismo de “cercear a liberdade de imprensa”, ela está, como aqui, reclamando da tentativa do governo de quebrar o monopólio da informação, o que tecnicamente se chama “propriedade cruzada” dos meios de comunicação. Situação que, de resto, favoreceu muito a tentativa de golpe de 2002.


O grande pecado de Chávez, a meu ver, é ele não ter criado uma alternativa para diversificar a economia venezuelana, mudando o modelo rentista. É um modelo que usa as divisas advindas da exportação de petróleo para o consumo e faz com que o país se torne totalmente dependente das importações, bloqueando qualquer possibilidade de industrialização. Trata-se de uma versão da “doença holandesa” que costuma acometer países com recursos naturais abundantes. Seria necessária a criação de um fundo soberano, como fez a Noruega, para investir maciçamente na diversificação da economia. Mas ele não teve visão ou capacidade para tanto. 


...e o lado popular e democrático 
Mesmo seu proclamado “anti-imperialismo” era mais retórica do que outra coisa. Tanto que a Venezuela chavista jamais deixou de exportar petróleo para os Estados Unidos. Mas essa retórica foi certamente importante para criar uma nova realidade geopolítica, com a formação de um bloco sul-americano para enfrentar o desafio da ALCA, a malfadada área de “livre comércio” das Américas que quase nos engolfou. Seu papel nesse processo não foi secundário, até pelo exagero. O temor de Chávez fez com que o Brasil e Lula – um “moderado” perto do venezuelano – colhesse os frutos.


O fato de Chávez ter sido fanfarrão, boquirroto e simplista pode irritar as elites bem-nascidas da Venezuela e alhures, como a persona de Lula incomoda os nossos reaças de plantão. Mas não deve turvar nosso raciocínio sobre seu papel histórico e seu legado. 

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