A VOLTA DA VELHA FRATURA DA FRANÇA
A França se tornou o mais
recente país europeu a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A
medida, de iniciativa dos socialistas, foi recebida com festa por boa parte
da população, mas repudiada violentamente por outra parte dos franceses.
Manifestação a favor da lei do casamento homossexual |
Protestos contra a lei: curiosamente, elas usam o barrete vermelho |
A
Igreja Católica mobilizou contra o projeto sua vasta rede de escolas e
paróquias
e os representantes do islamismo e do judaísmo na França também
repudiaram
unanimemente o casamento gay. Ironicamente, os manifestantes contrários
ao projeto estão usando barretes frígios vermelhos, símbolo
revolucionário. O fato é que a velha fratura da França em duas nações
antagônicas
e inconciliáveis, nascida com a Revolução de 1789, parece não ter fim.
A França viveu jornadas
revolucionárias em 1789, 1830, 1848 e 1871, nas quais sempre ficou claro a luta
fratricida que, em linhas gerais, opunha os partidários da liberdade e da igualdade
social, de um lado, aos defensores da aristocracia, da ordem hierárquica e dos
privilégios, de outro. E, em quase todos esses episódios, os primeiros levaram a
melhor.
O capitão Dreyfus é expulso do Exército |
Essa divisão ganharia
contornos dramáticos a partir do final do século XIX, com o chamado “Caso
Dreyfus” (Affaire Dreyfus, em francês).
Em 1894 Alfred Dreyfus, capitão de artilharia do Exército francês, de origem judaica, foi
condenado por alta traição por uma Corte Marcial, num processo fraudulento e
conduzido a portas fechadas. Quando alguns oficiais descobriram as irregularidades,
o alto comando militar tentou encobrir o erro apelando para o antissemitismo e
a xenofobia. O caso saiu dos quartéis e ganhou dimensão nacional. Ao lado dos militares se postaram os os antidreyfusards: a
Igreja Católica, que havia perdido os privilégios na educação; os
contrarrevolucionários; os monarquistas e os políticos de direita. Em
defesa do
capitão Dreyfus, exilado na Ilha do Diabo, se colocaram os dreyfusards: revolucionários, socialistas, republicanos, radicais
e intelectuais, como o escritor Émile Zola. Os dreyfusards
venceriam a contenda muitos anos depois, mas o confronto não terminaria.
León Blum, líder do Front Populaire |
A fratura entre as duas
Franças reapareceria com força em 1936, com a vitória do Front Populaire, liderado pelo socialista León Blum; mas essa fratura ficaria
realmente exposta com a ocupação alemã e a instauração do regime colaboracionista
de Vichy, chefiado pelo marechal Philippe Petáin. Esse regime representava, grosso
modo, os mesmos setores antidreyfusards
do passado e tinha talvez a metade da nação atrás de si, ao contrário do mito da
“França resistente”, propagado no pós-guerra pelo gaullismo para tentar restaurar a grandeur française humilhada
pela ocupação.
O general Charles De Gaulle |
A Guerra da Argélia (1954-1962)
foi outro episódio a confrontar as duas Franças, mas desta vez as cartas ficaram
um pouco embaralhadas. Isso porque, na V República, os socialistas integraram vários
gabinetes e apoiaram decididamente a repressão ao movimento de independência
argelino, com todas as suas conseqüências, como a institucionalização da
tortura. Paradoxalmente, o general Charles De Gaulle, que os militares viam
como o “salvador” da França para esmagar os argelinos, iniciou a negociação com
os insurgentes, atraindo o ódio eterno da extrema direita.
Maio de 1968 |
Em maio de 1968, os
estudantes franceses foram às ruas para exigir “a imaginação no poder” e chegaram
a assustar os vetustos líderes da V República. Mas a velha elite dirigente da França
conseguiu se unir e o status quo foi
preservado, c
om o governo inclusive ganhando as eleições gerais.
E, agora, a liberdade sexual,
uma das heranças daquela época de rebelião comportamental, se tornou o mais novo campo de batalha entre dreyfusards e antidreyfusards.
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