Carandiru
Um regime democrático pressupõe a limitação do poder e não cabe ao policial justiçar criminosos.
Por: José Nabuco Filho
A tropa entra em um pavilhão onde presos brigam entre si e onde não
existe refém. Ao invés do batalhão de choque, normalmente usado nesses
casos, na frente vai uma tropa de elite especializada em matar, a Rota.
Eles não reagem e se escondem em suas celas. Centenas de tiros são
ouvidos e os policiais de fora comemoram. 90% dos disparos ocorrem para
dentro das celas, pela abertura da porta.
Rio de sangue |
Uma cascata vermelha de água e
sangue desce pelas escadas do pavilhão. 111 detentos são mortos e
nenhum policial é ferido. O comandante da operação elege-se, anos
depois, duas vezes deputado estadual, usando o 111 como número de sua
candidatura. O então governador afirma que a ação foi legítima.
Na madrugada deste domingo, 20 anos depois, o tribunal do júri
finalmente julgou parte dos acusados e deu seu veredito: a condenação de
23 policiais da Rota, a uma pena de 156 anos de prisão, pela morte de
13 presos. Não são raras as pessoas que afirmam que os policiais
cumpriram o dever ao eliminar a vida dos presos que, afinal, “não eram
santos”. Eis a maior tragédia desse episódio: a complacência da
sociedade.
No Judiciário e no Ministério Público, é possível encontrar quem defenda
o massacre. A incrível demora do julgamento desse caso é algo que causa
perplexidade. Uma certa aceitação do massacre pesou para isso. Não foi
dada a prioridade que merecia um caso de tamanha magnitude. Não é
possível, à luz do direito e dos valores elementares da democracia,
justificar aquelas mortes. E os representantes do povo, reunidos na sala
secreta, assim entenderam.
A única justificativa legal para um policial matar alguém é a legítima
defesa, sua ou de outra pessoa. Fora dessa situação, estará configurado
crime de homicídio. A alegação de que presos possuíam armas de fogo é
uma farsa que subestima a inteligência de qualquer um. A briga se dava,
como é comum nos presídios brasileiros, com o uso de facas e estiletes
feitos por eles mesmos. E nenhum detido, por mais desvairado que fosse,
enfrentaria a Rota, com policiais armados com metralhadora, esgrimindo
estiletes artesanais.
Os relatos contam que as metralhadoras eram colocadas na janelinha da
porta da cela e a rajada era disparada para dentro. Os peritos não
encontraram sinais de tiros de dentro para fora. Os policiais, antes de
deixarem o prédio, desfizeram o cenário, para atrapalhar a perícia e
apresentaram fraudulentamente, como é usual nesses casos, velhos
revólveres, na tentativa de atribuir aos presos a iniciativa do
tiroteio. Há relatos de que detentos nus foram obrigados a amontoar
cadáveres e, quando não restavam mais corpos, foram assassinados
friamente.
“Existiam pessoas que estavam matando umas as outras. A polícia não pode se omitir”
Dentre os que tentaram justificar essa ação está o então governador Luiz
Antônio Fleury Filho ( na foto á esquerda), que disse, em testemunho no júri, que a ordem
seria legítima, pois “existiam pessoas que estavam matando umas as
outras. A polícia não pode se omitir”. Dos 111 mortos, apenas 9 foram
assassinados com arma branca (facas ou estiletes), ou seja, por outros
presos. Segundo a lógica fleuryana, 9 presos foram mortos por detentos e
a PM matou mais 102 para que os outros não matassem. Talvez Fleury
estivesse defendendo o monopólio da matança.
Não existe democracia que tenha alcançado a paz social através da
violência policial. Um regime democrático pressupõe, sobretudo, a
limitação do poder, por isso o policial tem limites em sua atuação. Não
lhe cabe o papel de justiçar criminosos, a pretexto de defender a
sociedade. A expectativa, agora, é saber sobre a apelação interposta
pelos condenados. Nesse caso, as possibilidades são duas: uma é a
anulação do julgamento se houver vícios processuais, ou seja, se a forma
do julgamento não tiver sido respeitada. A outra é a análise de provas
pelo Tribunal de Justiça. Os acusados, como já disse, não podem ser
absolvidos, mas a lei permite eles sejam julgados novamente, se entender
que a condenação foi “manifestamente contrária à prova dos autos”. Isso
só vale quando a decisão é despropositada, completamente absurda, o que
não é o caso.
Do ponto de vista histórico, o ex-governador Fleury terá em sua
biografia a marca indelével de ter sido o governador do massacre do
Carandiru. Mas a verdade é que uma sociedade que justifica o massacre de
mais de 100 pessoas pela polícia está clamando por atos de opressão do
estado. Ao condenar os 23 policiais da Rota, os jurados estão fazendo
uma reconciliação do país com os valores essenciais da democracia.
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