(JB)-Embora, pelos cânones
hebraicos, não fosse judeu, porque nascido de mãe não judia, Marcos Magalhães
Rubinger* era orgulhoso de sua circunstância, e se identificava como judeu.
Antropólogo conceituado, e homem de esquerda, ele foi compelido ao exílio pelo
regime militar brasileiro.
Ao encontrá-lo na Suíça, em 1967, logo depois da Guerra dos Seis Dias, que consolidou a
posição do Estado de Israel no território palestino, ele estava desolado: os
judeus haviam dado mais um passo atrás de sua plena integração à Humanidade.
“Continuamos no gueto” – me disse. “No grande
gueto que nós mesmos instalamos e, tal como ocorreu com o Gueto de Varsóvia, iremos
murá-lo e selá-lo por dentro”. A grande muralha de Israel ainda não fora
levantada.
Talvez não haja tema histórico mais
discutido do que o do povo de Israel. Só isso basta para atestar a sua
importância na formação da idéia do Ocidente nestes dois últimos milênios. A
sua presença na Europa e no mundo conquistado pelos romanos e seus sucessores,
mais do que documentada, é cercada de mitos.
Não há dúvida de que foi povo perseguido, obrigado a isolar-se em sua fé, e a defender-se, como lhe era possível, a fim de impedir o genocídio. Essa defesa os levou a buscar o conhecimento e a riqueza, que não lhes bastou para impedir a perseguição, nem foi suficiente para conjurar sua divisão entre judeus ricos e judeus sem dinheiro, para lembrar a obra prima de Michael Gold, pseudônimo do jovem escritor americano Itzok Isaac Granich.
Nestes dias de abril e maio, os judeus – e os humanistas mais atentos – lembram dois episódios fortes na história contemporânea: o Levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, e a criação do Estado de Israel, em 1948. Há quem associe os dois fatos, como se tratasse de uma coisa só; há quem assegure que, sem o Levante, não teria havido o segundo êxodo e sua conseqüência política, e há os que separam os dois episódios, dando a cada um deles sua própria razão.
Como é costume ocorrer na História, todas as
três versões são corretas, – o que difere é a contribuição de cada uma delas no
desenvolvimento posterior da questão judaica.
Recente artigo da historiadora norte-americana Marci Shore, publicado pelo New York Times, ao reconstruir a crônica da resistência dos judeus de Varsóvia, abre o caminho para nova interpretação dos fatos. Ela mostra como os judeus de Varsóvia se encontravam inermes diante do ocupante nazista. E revela que a resistência, naqueles dias de abril e maio de há 70 anos, foi ato de dignidade, assumido por jovens dispostos a morrer lutando, e não conformados a ver a resignação de seus pais e avós, ao embarcar rumo aos campos de extermínio a poucos quilômetros de Varsóvia.
Os nazistas, depois da ocupação da
Polônia, empurraram, pouco a pouco, todos os judeus da cidade ao imenso gueto e
os obrigaram a erguer espesso muro em volta: as únicas entradas e saídas eram
vigiadas por soldados das SS.
De acordo com a sua política perversa,
criaram, em 1942, um Conselho Judaico,
encarregado de indicar a lista diária dos que deviam ser encaminhados às
câmaras de gás e aos trabalhos forçados, presidido por Adam Czerniakov.
No dia 22 de julho daquele ano, os nazistas decidiram iniciar a deportação em massa dos judeus do Gueto rumo a Treblinka e a Auschwitz. Como conhecesse o destino que os esperava, no dia seguinte Czerniakow engoliu uma cápsula de cianureto.
Não houve unidade na luta de
resistência. Os sionistas de extrema direita formaram seu próprio corpo de
combate. Os mais duros guerreiros foram jovens, alguns deles religiosos, mas a
maioria de agnósticos e marxistas, ligados aos movimentos socialistas de
esquerda, como a Bund (Liga) e com
forte presença de comunistas. Quando os nazistas atearam fogo ao Gueto, o
núcleo duro da resistência refugiou-se em um bunker, sob o comando do jovem
Marek Elderman. Ele e seus companheiros fugiram pelos esgotos fétidos, nos
quais a maioria morreu asfixiada pelos gases. Quarenta deles sobreviveram,
alguns se aliaram aos guerrilheiros poloneses e russos, e muitos sobreviveram à
Guerra.
Elderman, depois da derrota alemã, tornou-se
cardiologista – e jamais quis viver em Israel. Ele, e muitos outros, defendiam a cultura
ashkenazi, fundada no uso do ídiche como o idioma de seu povo, e um “modus
vivendi” com os povos conhecidos, o que seria facilitado pelo resultado do
conflito; não a ocupação de um território no meio do deserto, ao lado de grupos
étnicos estranhos, nem a ressurreição de
uma língua morta, só usada nos ritos religiosos, como idioma oficial.
Em razão disso, o Estado de Israel não o considera herói nacional. Ele era um dos que, como Rubinger, defendiam o convívio dos judeus com os outros povos, e achava um erro estratégico a criação de Israel, que vinha sendo planejada desde o fim do século 19.
Os sionistas se apropriaram da gesta
heróica dos combatentes do Gueto de Varsóvia, como se tratasse de uma vitória
sua. Na realidade foi uma vitória do melhor do povo judeu, dos filhos de
trabalhadores, de intelectuais engajados nos movimentos políticos clandestinos,
dos que não aceitavam o triste e resignado cortejo de seus pais e seus irmãos
menores rumo às câmaras de gás.
O
Levante foi a resposta viril ao Holocausto,
e redimiu, na bravura de seus jovens, o grande povo judeu. Se a
Humanidade tiver algum futuro, a resistência do Gueto de Varsóvia será vista,
nos séculos a vir – como muitos a vêem
hoje – como ato muito mais importante do que a criação do Estado de Israel.
Ela
se equivale à dura resistência do povo de Stalingrado, com uma virtude a mais. Em
Stalingrado os combatentes contavam com a nação. Em Varsóvia, em uma Polônia marcada
pelo racismo, os jovens judeus estavam sós.
O general Jurgen Stroop, comandante das tropas
de Varsóvia que massacraram os habitantes do Gueto, foi condenado à morte em
1951 e executado pelo governo polonês. Mas cumprira a sua missão, conforme
relatório a Berlim: em maio de 1943 já não havia um só bairro judeu em
Varsóvia.
Mais de 300.000 judeus haviam sido
enviados para as câmaras de gás, e se calcula que mais de 10.000 morreram
calcinados pelas chamas em que ardeu o Gueto, naqueles dias de maio.
No dia 7 de dezembro de 1970, como correspondente deste Jornal do Brasil, assisti ao Chanceler Willy Brandt em gesto grandioso, ajoelhar-se diante do marco evocativo do Gueto de Varsóvia. O líder socialista, com a autoridade de quem resistira, ainda adolescente, ao nazismo, ajoelhou-se, em atordoante silêncio, em homenagem aos combatentes de 1943 – ou, seja, de 27 anos antes.
Esses registros históricos e a situação atual de Israel – com tantos e eminentes judeus que se opõem ao genocídio dos palestinos e buscam construir a paz – tornam proféticas as palavras de Marcos Rubinger: trata-se de imenso gueto, erigido em terras estranhas, murado por dentro. Os jovens de Varsóvia lutaram e morreram para que não houvesse muros.
Alguns, como Marek Elderman, sonhavam com uma
única Humanidade.
Talvez
ainda haja tempo.
Nota do MVIVA: * Marcos Magalhães Rubinger, cuja carreira de professor e pesquisador, na Universidade Federal de Minas Gerais, foi bruscamente interrompida logo no início do Movimento de 1964, que o levou à prisão e ao exílio, o que sem dúvida contribuiu para sua morte prematura em 1975.
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