Por Marcelo Badaró Mattos–Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense
A
greve não é o único/melhor instrumento de luta. A greve no serviço
público/na educação não é eficaz. Devemos recorrer a outras formas de
luta? Devemos ir para as ruas. A greve esvazia a universidade…
Sem dúvida, a greve não é o único instrumento de luta de trabalhadores.
Ela é sempre utilizada quando outras tentativas de defesa dos seus
interesses fracassam em conquistar resultados em torno de demandas
coletivas. No entanto, a greve é um direito fundamental dos
trabalhadores, que serão sempre a parte mais fraca numa relação com seus
patrões, no setor privado ou no público, e tem nesse instrumento uma
forma de tentar equilibrar, mesmo que momentaneamente, o jogo desigual
que caracteriza a exploração do trabalho assalariado.
No serviço público, e especialmente na área da educação, a greve não tem
o mesmo objetivo de causar prejuízo econômico, e com isso pressionar os
patrões, que possui no setor privado. Ela existe como estratégia de
ampliação do poder de pressão, através da mobilização coletiva, para que
demandas fundamentais, salariais, de condições de trabalho e de defesa
da educação pública, ganhem maior audiência e criem constrangimentos que
obriguem os governos a negociarem.
Por isso mesmo, não há oposição entre greves e outras formas de luta.
Pelo contrário, aqueles que defendem de forma consequente a necessidade
de ocupar as ruas sabem que só com grande quantidade de pessoas é
possível obter êxito em uma manifestação desse tipo. Mas, como colocar
milhares de educadores e estudantes nas ruas se eles estão nas salas de
aula? Para muitos o fundamental é garantir maior repercussão nos meios
de comunicação de massa. Sabemos que a mídia é fundamentalmente composta
por grandes oligopólios empresariais, cujos interesses estão distantes
de convergir para a defesa da educação pública e dos trabalhadores. Por
mais insistência que tenhamos em buscar esses canais em tempos de
funcionamento normal das instituições o resultado é quase nulo. Com as
greves, a coisa muda de figura. Em nossa última paralisação de 24h, por
exemplo, todas as grandes redes de televisão fizeram matérias sobre a
situação das universidades e a paralisação, da mesma forma que os
principais jornais impressos e sites de notícias. Em greves anteriores, a
cobertura da mídia – mesmo que muitas vezes deturpando nossas
reivindicações – foi sempre muito mais ampla que em momentos de
atividades normais.
Uma greve pode sim esvaziar a universidade. Mas, não precisa ser assim. E
muitas vezes não é assim. Os três segmentos da comunidade universitária
(docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes) programam
muitas atividades de mobilização nos espaços universitários – debates,
rodas de conversa, exibição de filmes, atos, acampamentos, etc. – e
aproveitam o momento da greve para discutir das questões mais
específicas das universidades às mais gerais do país e do mundo, com um
olhar pedagogicamente crítico, que deveria nortear todo o nosso
cotidiano nas instituições, mas que sabemos nem sempre é a tônica no dia
a dia da atividade universitária.
Quanto à eficácia do instrumento, para quem conhece a história das
greves universitárias e de seus resultados desde o fim dos anos 1970, o
argumento de que para nada servem é insustentável. Todas as conquistas
salariais e referentes à carreira docente foram decorrentes de greves
nas instituições de ensino. Além disso, tais greves conquistaram muitas
vezes avanços significativos para a vida universitária em geral e, em
outros momentos, foram barreiras interpostas às propostas governamentais
danosas à universidade pública, que não foram aplicadas ou o foram
limitadamente graças à força das greves. Um quadro muito sintético das
greves nas instituições federais de ensino pode ser encontrado nesse
link.
No entanto, vale lembrar, que muitos dos que argumentam que as
instituições se esvaziam nas greves e que era preciso ir para as ruas,
em certos casos são docentes há mais tempo que eu e nunca os vi em
atividades de mobilização no interior das universidades, antes ou
durante as greves, e nunca os encontrei em nenhuma manifestação de rua
em defesa da educação/das universidades públicas. Outros, não só
participaram como até organizaram atividades desse tipo há muitos anos,
quando eram estudantes e docentes mais jovens, mas hoje as condenam:
eles não mudaram de opinião, mudaram de lado.
As greves na universidade só param a graduação e prejudicam os estudantes de graduação…
Não é verdade que as greves só param as aulas de graduação. Atividades
de pesquisa e extensão também são paralisadas pelos que participam das
greves. Quando ingressei na universidade essa questão sequer era
levantada, porque não se fazia diferença, quando uma greve começava,
entre aulas na graduação e na pós-graduação. Nas últimas duas décadas e
meia, cresceu muito a pressão sobre as pós-graduações para apresentarem
indicadores quantitativos de produtividade que são a base central de
avaliações feitas pela CAPES e que podem representar mais ou menos
recursos financeiros, bolsas de estudo e prestígio acadêmico. De lá para
cá, cresceu também o número de argumentos contrários à suspensão das
atividades de pós-graduação em função dessa pressão da CAPES.
No entanto, muitos docentes e programas inteiros continuam a paralisar
suas aulas na pós-graduação, buscando contornar sempre que possível a
pressão das agências de fomento/avaliação, pois percebem que tal pressão
não tem como contrapartida a garantia dos recursos e condições de
trabalho adequados ao funcionamento dos programas com qualidade. Os
comandos locais de greve também são cientes de que algumas bancas e
atividades são agendadas com muita antecedência, significam despesas com
passagens e diárias já realizadas e autorizam excepcionalmente tais
atividades. Os que continuam trabalhando regularmente na pós-graduação
durante as greves, portanto, o fazem por decisão própria de furar uma
greve, utilizando os argumentos da especificidade das pós como biombos
para suas atitudes, e depois, ironicamente, acusam as greves de só
paralisar a graduação. Muitas vezes, os que dizem isso, são os mesmos
professores que no dia a dia dos cursos, menosprezam as aulas na
graduação e justificam que sua “excelência” os deveria liberar de tal
“fardo” para dedicação integral à pesquisa e pós-graduação.
Por outro lado, cabe sempre a pergunta: o que realmente prejudica o
estudante – de graduação ou pós – uma greve que pode se estender por
algumas semanas, defendendo a universidade pública, ou a falta de
condições adequadas de estudo e permanência na Universidade?
Numa greve como a que se iniciará em 28 de maio de 2015, cujo motivo
maior, além da defasagem salarial dos docentes (motivo justo e digno,
diga-se de passagem, pois todo trabalhador assalariado tem direito à
proteção mínima de seus vencimentos face à inflação) é o conjunto de
medidas destrutivas à universidade pública, não há dúvidas da justeza do
movimento para grande parte dos estudantes. Afinal, faltam professores
em muitos cursos, há outros em que obras estruturais necessárias à
construção de salas de aulas, bibliotecas e laboratórios não foram
executadas ou pararam pelo meio, há falta de bandejões e alojamentos
estudantis, as bolsas são insuficientes e estão atrasando, entre muitas
outras situações. Todas motivadas por uma expansão de vagas discentes
que não foi acompanhada do necessário crescimento do número de docentes e
do aporte de recursos para infra-estrutura, manutenção e assistência
estudantil. O que tem sido muito agravado nos últimos meses pelas
políticas de “ajuste fiscal” do governo federal, que repassará R$15
bilhões de reais ao setor privado através do FIES (financiamento
estudantil), mas corta R$ 9,43 bilhões do orçamento do Ministério da
Educação.
Por isso os estudantes da UFF e de outras universidades fizeram suas
assembleias e deliberaram pela greve. Porque sabem que essa luta também é
sua.
Curioso que os que argumentam que a greve prejudica os estudantes,
desconsideram completamente a posição coletiva dos próprios estudantes. O
que é bem ilustrativo de como enxergam sua atividade docente e seus
estudantes: são os portadores do conhecimento e da verdade, que buscam
iluminar os pobres e ignorantes estudantes, que sequer percebem que
estão sendo prejudicados com a greve.
Há motivos para a mobilização ou até mesmo a greve, mas esse não é o melhor momento…
Calendários diferenciados, momentos distintos dos semestres letivos,
incertezas sobre os processos de negociação, são argumentos utilizados
para questionar a oportunidade da greve, mesmo que utilizados por vozes
que não questionam a legitimidade do instrumento de luta. Nesse caso,
cabe lembrar que desde o final do ano de 2014 o governo está
implementando as políticas de cortes de verbas e as propostas de
retirada de direitos dos trabalhadores (vide as Medidas Provisórias que
dificultam o acesso ao seguro desemprego e abono salarial, assim como
restringem pensões, bem como o projeto de lei que libera as
terceirizações, entre outras medidas). Nos últimos dias, com o anúncio
de novos cortes e o avanço das medidas no congresso nacional, a situação
só tem piorado.
No que diz respeito aos servidores públicos federais e aos docentes das
instituições federais de ensino, paralisações e movimentos, em Brasília e
nos estados, pressionaram o governo a receber as entidades em reuniões,
mas nenhuma resposta concreta às pautas foi apresentada. Sabemos que
tanto as demandas por carreira/salário, quanto aquelas referentes a mais
verbas para as instituições (de forma a garantir as condições de
trabalho/estudo) dependem de rubricas orçamentárias. A Lei de Diretrizes
Orçamentárias do ano de 2016 tem que ser apreciada pelo congresso até
agosto. Caso não tenhamos nossas reivindicações atendidas até lá,
teremos que nos resignar a reajuste zero no próximo ano e ao
aprofundamento do caos na vida universitária. Por isso o momento da
greve é este. Ela acontece quando as condições para sua construção
caminham mais rapidamente e a necessidade de uma intervenção coletiva
que garanta a negociação com o governo já se faz mais que urgente.
O
ANDES-Sindicato Nacional e as suas Seções Sindicais não são
representativos. As Assembleias Gerais que decidem as greves não são
representativas/legítimas. Seu funcionamento e suas decisões não são
democráticas…
O ANDES-SN é o resultado de mais de três décadas de organização e lutas
docentes. Como toda entidade sindical possui limites e problemas. Mas,
está organizado pela base, através de suas seções sindicais em
praticamente todas as instituições públicas de ensino superior. Sua
direção nacional é eleita diretamente pelos associados, através das
seções sindicais, e possui secretarias regionais espalhadas por todo o
território nacional, de forma a dar conta da diversidade de situações no
país. As taxas de sindicalização nas seções sindicais são elevadas,
muito superiores à média do país. Na ADUFF-SSind, por exemplo, tínhamos
2.561 docentes associados em 2014, sendo 1381 ativos (cerca de 46% do
total de docentes da instituição) e os demais aposentados.
No sindicato exercita-se a democracia em suas diferentes possibilidades.
A diretoria nacional e as diretorias das seções sindicais são
escolhidas diretamente pelo voto dos associados. As instâncias nacionais
de deliberação da categoria (as diretorias são apenas executivas) –
Conselhos de Seções Sindicais e Congresso, ordinariamente anuais – são
constituídas por delegados eleitos em suas bases, através das
assembleias gerais. E nas Assembleias Gerais, prevalece a democracia
direta, com base nas discussões e votações dos participantes.
Na UFF, as assembleias gerais são abertas a todo o corpo docente,
independentemente de filiação ou não ao sindicato, porque entendemos que
a luta coletiva se faz por e em nome de todos, portanto todos tem
direito a voz e voto nesses espaços. O acúmulo de experiências
históricas nos leva a conceber que esse é o espaço deliberativo mais
democrático para decisões como a construção de uma greve. Porque ali os
participantes trocam informações, análises e avaliações e – convergindo
ou divergindo – votam esclarecidos por esse debate e constroem
coletivamente suas deliberações. Esse sentido coletivo da democracia
direta em uma entidade de trabalhadores é fundamental e não pode ser
substituído por consultas plebiscitarias, em que indivíduos votam
isoladamente, a partir de convicções construídas por diversos caminhos,
mas sem participarem ativamente de uma discussão coletiva.
Da mesma forma, incentivamos e participamos de todo tipo de reunião de
docentes em âmbito departamental, de cursos ou unidades. Todo fórum
convocado para discutir os problemas docentes e da universidade é
importante para o avanço do conhecimento coletivo da situação e
mobilização dos docentes. No entanto, esses fóruns não são espaços
deliberativos da vida sindical, porque não se organizam para tanto e,
especialmente, porque no caso das instâncias institucionais –
departamentos, colegiados, etc. – estão sujeitos a lógicas de
funcionamento e hierarquia funcional de ordem distinta da lógica
sindical, que deve ser autônoma em relação a todos os níveis da gestão
institucional, garantindo que as deliberações docentes possam estar
livres de qualquer pressão de chefias imediatas ou gestões superiores
das instituições.
As
direções dos sindicatos são “vanguardas iluminadas”, “radicais”,
“pseudo-revolucionários” que decretam greves de cima para baixo…
Seriam argumentos cômicos, não fosse trágico escuta-los de professores
universitários. Trágico porque cada vez que um docente toma emprestado
esse tipo de argumento da pena dos articulistas da extrema-direita
reacionária dos panfletos mais abjetos da imprensa empresarial (como os
colunistas da revista Veja), assume conscientemente o papel de arauto
dessa ideologia reacionária, que procura associar todo tipo de movimento
social/sindical e suas lideranças a uma nova “ameaça comunista”, no
estilo típico da Guerra Fria. Em tempos de manifestações reacionárias
como as ocorridas em março e abril, de debates no Congresso Nacional
sobre um projeto de lei que visa estabelecer “crime de doutrinação
ideológica” para punir professores que estimulem o pensamento crítico e o
debate de ideias entre seus alunos, tais argumentos são lamentáveis
ecos internos de um reacionarismo crescentemente, incentivado pelas
forças políticas e sociais mais conservadoras no país e seus diligentes
prepostos na “grande” imprensa.
Os dirigentes sindicais do movimento docente exercem seus cargos sem
qualquer vantagem pessoal, na maioria das vezes sem dispensa da
atividade acadêmica regular e por períodos de tempo limitados (em nosso
estatuto nacional e no regimento local, ninguém pode permanecer por mais
de dois mandatos seguidos nas diretorias). Expressam diferentes
posições políticas e ideológicas, e participam dessas atividades movidos
principalmente pela convicção de que o instrumento sindicato é
fundamental para qualquer trabalhador, aí incluído o docente.
De qualquer forma, podem acertar ou errar, podem manifestar posições
políticas as mais distintas, mas nunca o fazem sozinhos, porque procuram
agir como representantes de coletivos maiores e discutem suas posições
pessoais e/ou coletivas em espaços democráticos de deliberação. Assim,
na UFF, por exemplo, a última assembleia geral dos docentes, que aprovou
a deflagração da greve, contou com a participação de 281 professores,
que assinaram a lista de presença. No momento da votação, 155 votaram
favoravelmente à proposta, 46 contrários e uma abstenção. Outras
assembleias, com mais de uma centena de presentes, aconteceram nas
semanas anteriores, levantando os problemas e discutindo os
encaminhamentos que antecederam a deliberação sobre a greve. Muitas
acontecerão durante a greve. Como eu disse, todas são abertas à
participação, voz e voto de todo e qualquer docente. Quando alguém se
recusa a participar de um espaço tão aberto quanto esse e depois
questiona a legitimidade do espaço ou procura detratar as organizações,
militantes e dirigentes, devemos desconfiar um pouco mais da crítica.
Em síntese
Nenhuma forma de luta é perfeita e nenhum processo democrático pode ser
considerado acabado numa sociedade regida por uma lógica que é estranha e
contrária aos interesses da maioria trabalhadora da população. Por
isso, todo o esforço coletivo para debater e aperfeiçoar nossas formas
de organização e nossos métodos de luta deve ser saudado como sinal de
vitalidade do movimento.
No entanto, muitas das críticas à greve e ao sindicato têm raiz em outro
tipo de preocupação e concepção. Há ainda quem na universidade resista a
compreender-se como trabalhador e por isso rejeite toda e qualquer
forma de organização e luta coletiva associada aos trabalhadores. São
aqueles que consideram que seu trabalho intelectual os eleva acima dos
terreno comum dos mortais e, consciente ou inconscientemente, acabam por
aderir aos argumentos e instrumentos dos que buscam deslegitimar ou
mesmo desmontar as organizações e lutas dos trabalhadores. Há também os
que, por adesão a um determinado projeto político levantam argumentos
falaciosos contra os movimentos dos docentes, porque colocam a defesa de
seu projeto/governo acima da defesa da universidade pública. Não
podemos deixar de reconhecer que esse projeto tem tentado, ao longo da
última década, fragmentar e enfraquecer as organizações representativas
do movimento docente. Basta lembrar o apoio governamental à criação da
entidade Proifes, que antes mesmo de ser formalizada já era chamada a
sentar-se às mesas dos gabinetes ministeriais. As greves são uma ameaça a
entidades fantoche desse tipo, porque como elas não possuem
representatividade de base real, em momentos como esse sua fachada de
legitimidade desmorona. Basta lembrar de 2012, quando os docentes foram à
greve em praticamente todas as instituições (houve uma exceção) em que o
movimento docente supostamente seria dirigido por essa entidade, que se
contrapunha ao movimento, e reconheceram o ANDES-SN como seu efetivo
representante naquele momento.
Cada greve é um processo único de aprendizado. Podemos conseguir mais ou
menos conquistas com elas, mas em um momento como este que hoje vivemos
na universidade é fundamental construirmos uma resposta coletiva às
políticas destrutivas que estão em curso. A greve se apresenta como
oportuna e necessária, justamente porque a situação é muito adversa. Os
resultados da mobilização dependerão, em grande medida, de nossa força
coletiva. De qualquer forma, teremos com certeza muito a aprender com
ela.