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quinta-feira, 25 de março de 2010
CHILE: A TRAGÉDIA SOBRE TRAGÉDIA...
Marcela Escribano (*)
A chegada da direita ao poder encerra o mais recente ciclo da história política chilena e, simbolicamente, ocorre em meio aos escombros do terremoto do último dia 2 de março.
Abalos sísmicos e rupturas institucionais fazem parte da história do país.
O ímpeto reformista de Balmaceda, no século 19, e a experiência revolucionária de Allende, no século 20, ambos sufocados com a morte de milhares de chilenos, dão testemunho do destino trágico deste povo.
Um historiador contemporâneo, referindo-se às sucessivas crises políticas no Chile, observou que “os chilenos são um povo com os pés firmes na terra; o problema é que neste país o chão está sempre a ponto de se mover, e mostrar as suas entranhas”.
Apesar de tudo, a atual transição de governo se desenvolve num clima de normalidade institucional. É sinal de que as coisas podem ser diferentes no século 21. Deste ponto de vista, o balanço dos quatro governos de centro-esquerda, é positivo. A situação política, no entanto, é mais complexa.
Sebastián Piñera certamente não se recordará de Balmaceda ou de Allende no dia da sua posse. O homem mais rico do Chile, agora presidente do país por quatro anos (no Chile não há reeleição), é irmão de José Piñera, ex-ministro de Pinochet, responsável pela criação do sistema de previdência privada. Também é dele o Plano laboral, conjunto de normas editadas pela ditadura para amordaçar o sindicalismo chileno.
Piñera não dará conta de reconstruir o país contando apenas com as forças de centro-direita que o elegeram, principalmente a União Democrática Independente (UDI) e a Renovação Nacional (RN). Tampouco o fará com as políticas tradicionais do receituário neoliberal. É nos momentos de crise, sociais ou naturais, que a ausência do Estado é mais visível e danosa.
No rastro de destruição deixado pelo terremoto, também ruiu uma parcela da ideologia enaltecedora do modelo neoliberal que Piñera representa.
Diante da tragédia, salta aos olhos do mundo a debilidade da rede de proteção social do país. A ajuda pública demorou inexplicavelmente a chegar a cidades próximas a Concepción, como Coelemu e Chanco, destruídas pelo terremoto; e Dichato e Pelluhue, varridas pelo tsunami.
Não é tarefa fácil decifrar o enigma desse país, tão próximo e tão distante dos brasileiros.
O Chile alcançou a democracia política, em 1990, pela via da transição negociada, sem rupturas conflituosas. Neste aspecto, o país se parece mais com o Brasil do que com a Argentina, que chegou à democracia por meio da falência do Estado autoritário.
As Forças Armadas chilenas permaneceram unidas em torno do cronograma de transição definido por Pinochet. Lá não ocorreu a clássica divisão entre militares “duros” e “moderados”, observada por Guillermo O’Donnell nos demais países do Cone Sul.
Em conseqüência, quando as oposições democráticas agrupadas na Concertación venceram o plebiscito de 1988, derrotando nas urnas a tentativa de legitimação e continuidade da ditadura, Pinochet teve apoio das Forças Armadas para declarar: “Na Constituição não se toca”. Ele se referia à Constituição de 1980, promulgada em uma das fases mais repressivas do regime militar.
Ao longo desses anos a Constituição autoritária permaneceu vigente. A reforma de 2005, que eliminou os senadores vitalícios e restituiu o poder de o presidente indicar o comandante em chefe das Forças Armadas, foi considerada tímida e insuficiente.
Segundo Luiz Maira, ex-presidente do Partido Socialista Chileno, a solução que permitiu a chegada da Concertación ao poder vinte anos atrás teve como contrapartida a imposição, por parte do antigo regime, de restrições legais e salvaguardas institucionais.
Fez parte do acordo a permanência de Pinochet como senador vitalício, a impunidade às violações dos direitos humanos e a preservação da estrutura institucional do Estado mínimo. Durante esses anos, socialistas e democratas cristãos, os dois principais partidos da Concertación, revezaram-se no poder sem remover tais obstáculos.
Além das salvaguardas constitucionais, o governo Pinochet preparou um conjunto de leis que seguem em vigor até hoje. Maira chamou de “legislación de amarre” a este pacote deixado de presente a Patricio Alwyn, o primeiro presidente civil pós-ditadura, indicado pela Democracia Cristã.
O atual sistema majoritário binominal, herdado da ditadura, resultou desta legislação. Único no mundo, o sistema impede a representação das minorias políticas no Parlamento. O Partido Comunista Chileno, por exemplo, permaneceu excluído do Congresso Nacional nos últimos vinte anos.
Segundo Manuel Antonio Garretón, sociólogo e professor da Universidade do Chile, a vertente autoritária da direita chilena, herdeira do pinhochetismo, está alojada na União Democrática Independente (UDI). Ao celebrar a vitória de Piñera, estes grupos gritavam: “Pinochet, Pinochet, esta vitória é para você!”.
Trata-se de um partido que cresceu nas eleições parlamentares e representa segmentos de uma classe média baixa que saiu da pobreza e sonha em ter o sucesso de Piñera. Como diz Garretón em recente entrevista publicada no Brasil, “com os acenos que faz para a Concertación integrar seu governo, (Piñera) sinaliza que não quer, e nem pode, ficar no campo da direita. Se ficar, o risco de ser manipulado pelos autoritários é tremendo”.
Em face dos atuais desafios nacionais a situação chilena poderia se complicar. Calcula-se que a reconstrução do país levará anos e custará mais de U$ 30 bilhões. A interrupção de programas sociais, especialmente nas áreas de saúde e habitação, sairia caro ao novo governo.
Constrangido pela percepção de que o fantasma das lutas sociais tende a retornar, Piñera poderá alterar seus planos originais. Os partidos de esquerda e os movimentos sociais têm dado sinais de recuperação. É o caso das mobilizações dos estudantes secundaristas, dos mapuches e do sindicalismo.
Para Garretón, a "consolidação dos entraves autoritários" constitui o principal paradoxo da transição chilena. Paradoxo por paradoxo, diante dos desafios de reconstrução do país e das tensões políticas e sociais que poderão ser geradas por essa terrível tragéida, Piñera talvez seja compelido a dar um outro rumo para o seu governo.
(*) Marcela Escribano (Alternatives/Canadá) é diretora de projetos para a América Latina.
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