Assassinados e desaparecidos políticos |
Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente controla o passado. E, no entanto, o passado, conquanto natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples
1984, George Orwell
Reproduzo abaixo o artigo do jornalista Pedro Pomar sobre a aprovação unânime, pelo Senado, do projeto que cria a Comissão da Verdade.
Por Pedro Pomar
O Senado Federal aprovou por unanimidade em 26/10, em regime de urgência e sem emendas, o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 88/2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade. Agora, a matéria deverá ser sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, a quem caberá nomear os sete membros da nova Comissão.
Durante a audiência pública realizada em 18/10 na Comissão de Direitos Humanos do Senado, e também na votação do relatório do senador Aloysio Nunes (PSDB) na Comissão de Constituição e Justiça, em 19/10, alguns senadores manifestaram a disposição de apresentar emendas ao projeto, atendendo às reivindicações das entidades que representam familiares das vítimas da Ditadura Militar. No entanto, o governo se manteve intransigente e esses senadores recuaram na votação em plenário, desistindo de apresentar emendas.
Na audiência pública, presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS), houve unanimidade em torno de sete emendas de mérito. Elas foram propostas por representantes de ex-presos políticos, de familiares dos mortos e desaparecidos políticos e de grupos de direitos humanos; pelo secretário-geral da OAB, Marcus Vinicius Coelho; e pela procuradora da República Gilda Carvalho. As senadoras Ana Rita (PT-ES) e Lídice da Mata (PSB-BA) e os senadores Pedro Taques (PDT-MT), Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) e Pedro Simon (PMDB-RS) solidarizaram-se com os familiares e deram apoio às mudanças propostas.
Contudo, nem os ministros (Maria do Rosário e José Eduardo Cardozo) nem o relator do projeto compareceram à audiência pública, embora tivessem sido convidados. E já no dia seguinte o tucano Aloysio Nunes apresentava seu relatório, rejeitando, uma por uma, as emendas convalidadas pela Comissão de Direitos Humanos.
A expressão “Ditadura Militar” sequer aparece no texto aprovado. O período a ser investigado é o “fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” e não 1964-1985. Além disso, o texto atribui à Comissão a finalidade de “promover a reconciliação nacional”, ao invés de fornecer subsídios para que o Ministério Público possa processar os agentes da Ditadura que praticaram atrocidades.
Na audiência pública de 18/10, vários oradores se opuseram a essa ideia de “reconciliação nacional”, lembrando que é (ou deveria ser) outra a natureza da Comissão da Verdade: contribuir para que, uma vez esclarecidos os crimes cometidos, se faça justiça e sejam punidos os criminosos que praticaram o terrorismo de Estado.
A sessão plenária de 26/10 passará a figurar como uma das mais bizarras da história do Senado: no mesmo dia em que mais um ministro (Orlando Silva) foi derrubado por obra da oposição, senadores governistas incensavam o senador Aloysio Nunes por seu “maravilhoso relatório” (assim expressou a senadora Marta Suplicy, que presidiu os trabalhos) e até o senador Demóstenes Torres (DEM), após destacar seu próprio ― suposto ― passado de luta contra a Ditadura, irmanou-se à confraternização geral dos seus pares, todos festejando a “reconciliação nacional” prometida pela Comissão da Verdade.
Os familiares das vítimas ― e todos aqueles que lutaram contra a Ditadura e foram por isso torturados, condenados e presos ― foram profundamente desrespeitados, uma vez mais. Não há nenhuma garantia de que a Comissão que vier a surgir da lei a ser sancionada avance em relação ao que já se sabe.
Assim, enquanto o Senado do Uruguai derruba a Lei da Caducidade e retoma o acerto de contas com a Ditadura que infelicitou o país; enquanto a Argentina condena à prisão perpétua o ex-capitão Alfredo Astiz, covarde torturador e assassino de presos políticos, e encarcera almirantes e generais que cometeram crimes no regime ditatorial… no Brasil o pacto com os chefes militares ainda continua em plena vigência. A ponto de se permitir a participação de militares na Comissão da Verdade. Isso mesmo: a Comissão que terá a tarefa de investigar os crimes da Ditadura Militar poderá ser composta também por membros das Forças Armadas, conforme asseguram dois parágrafos do artigo 7° da lei recém-aprovada.
Espera-se que a presidenta Dilma, ao designar os membros daComissão, não cometa tal desvario. Mas a possibilidade consta da lei (por que será?) e foi expressamente defendida pelo ex-guerrilheiro e ex-deputado José Genoíno, hoje assessor do Ministério da Defesa. E, igualmente, foi admitida pelo relator Aloysio Nunes, que se recusou a acatar emenda que suprimia do texto do projeto os dispositivos citados.
Na visão do tucano, “essa discriminação contra membros das Forças Armadas me parece absolutamente descabida, num momento em que as Forças Armadas Brasileiras estão perfeitamente integradas à ordem constitucional”. O senador ignora o motim dos comandantes militares e do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, contra o Programa Nacional de Direitos Humanos, em 2010? Ignora o Manual de Contra-Inteligência aprovado pelo Exército em 2009, que manda espionar a sociedade civil, conforme denunciado pela revista Carta Capital na edição de 19/10?
Os movimentos sociais pressionarão e fiscalizarão a Comissão da Verdade para que ela produza resultados compatíveis com as expectativas criadas, apesar do formato mesquinho da lei. Amargaram uma derrota, mas seguirão em frente, como sempre fizeram até hoje. Muita gente acompanhará os trabalhos da Comissão, quaisquer que sejam os seus membros. O secretário-geral da OAB, que manifestou otimismo na audiência pública de 18/10, ainda assim mandou um recado ao governo: “Iremos denunciar publicamente se essa Comissão da Verdade vier a ser um faz-de-conta”.
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