Marighella, herói do povo
04 de novembro de 1969:ditadura militar mata o guerrilheiro da liberdade |
Liberdade ou morte |
Ele não partiria para o exílio. Tinha responsabilidades, noção do seu papel dirigente da revolução brasileira. "Quem samba fica, quem não samba vai embora". Gostava de repetir isso. Ficava, apesar de tudo. Sentia o cheiro dos cães farejadores, seus dentes afiados, a baba raivosa de cada um deles. Cães como Fleury. Ouviu tiros na noite escura, muitos. Caiu. Ainda pensou nela, na musa, Revolução. Era o dia 4 de novembro de 1969. Carlos Marighella,inimigo número um da ditadura militar tornava-se imortal. Herói do povo brasileiro.
Por Emiliano José*
O homem caminha na noite. Numa infinita solidão.
Sabe-se só.
Inelutavelmente só.
Solidão que não o maltrata.
Só solidão.
Não é a solidão, com quem sempre conviveu serenamente, que lhe confrange o coração.
São os mortos. Seus mortos.
Seus companheiros mortos. Os tantos em décadas.
E os mortos dos últimos dias. Aqueles que não desistiram de lutar.
E que tombaram massacrados, esquartejados sob mãos assassinas. As mãos sujas de sangue da ditadura.
Pensa em Jonas, comandante Jonas. Apenas o coração dele restara intacto. O resto, despedaçaram. Torturaram-no tanto que só o coração resistira. Só.
Bravo, leal, sensível, corajoso Jonas.
Eterno Jonas.
Não tivera medo. Morrera agora, setembro.
Caminha lentamente. Não sabe por que, mas de repente, lhe vem à mente a Revolução dos Alfaiates. Ou dos Búzios, como se queira. Os quatro mártires enforcados e suas cabeças cortadas e exibidas por muitos dias no centro de Salvador. Para que servissem como exemplo. Para que negro nenhum tentasse de novo rebelar-se contra o poder metropolitano.
A forca de 1799.
Agora esse clima de 1969.
Cento e setenta anos passados.
E qual a diferença?
Vai se interrogando, enquanto anda, enquanto curte a solidão.
Um país difícil esse nosso, de classes dominantes cruéis. Pensa em Canudos, o massacre nos sertões de sua terra.
Com uma ditadura como essa, só luta armada. Não há outro jeito. Repete isso, de si para si, como que a convencer-se de que não há mesmo outras saídas.
Está apreensivo. A palavra é essa: apreensivo. Não teve tempo para conhecer o medo, que naquele momento podia insinuar-se em seu espírito.
Acha interessante pensar nisso: o medo não o visitara até agora. Pensa nisso sem qualquer arrogância. Simples constatação.
Sua apreensão: o cerco apertava-se. Sentia isso no clima pesado de São Paulo, nas mortes seguidas, nas prisões. A Organização estava sob ataque cerrado do inimigo. Sabia, tinha convicção, que o caçavam de modo particular, e que não o poupariam.
Estava marcado para morrer. E isso não o atemorizava.
Era necessário, urgente organizar a retirada das grandes cidades.
Intensificar os preparativos para desencadear a guerrilha rural e a partir daí sublevar o povo brasileiro. Pensa em quantos foram embora do País, a seu conselho.
Ele, não. Não partiria para o exílio. Tinha responsabilidades, noção do seu papel dirigente da revolução brasileira, que se avizinhava.
Quem samba fica, quem não samba vai embora. Gostava de repetir isso.
Ficava, apesar de tudo.
Sentia o cheiro dos cães farejadores, seus dentes afiados, a baba raivosa de cada um deles. Cães como Fleury.
Quando soube do seqüestro do embaixador americano, 4 de setembro, teve certeza de que o torniquete iria se apertar. Sabia que a partir dali as forças repressivas jogariam toda sua força contra a Organização e contra ele.
Celebrou o seqüestro. O comandante Jonas à frente. A mais ousada ação revolucionária contra a ditadura. Sempre dissera que o dever de todo revolucionário era fazer a revolução. Ponto. Mas não tinha dúvidas sobre a avalanche, sobre o terror iminente, que veio, deixando um impressionante rastro de sangue e de dor.
Solidão.
Num relance, como um raio a espantar a solidão, surge Clara em sua mente, amor de toda a vida.
Pensa em Cuba, Fidel. Anima-se no meio da escuridão. Sierra Maestra. Nós também podemos fazer nossa revolução.
Vamos tirar todos os companheiros e companheiras de São Paulo. Vamos organizar nossas forças no campo, mobilizar os camponeses. Levantar o povo brasileiro. Derrubar a ditadura sanguinária. Chegar à democracia e ao socialismo.
O pensamento dá outro giro. Pensa na solidão e na esperança. Gozado: a solidão não lhe retira em momento algum o sentimento da esperança.
Confia profundamente na Revolução.
Confiança nascida já nos tempos de estudante na Bahia. Juracy Magalhães e sua violência e a primeira prisão, 1932. E depois a segunda, 1936, Rio de Janeiro. E as torturas, Filinto Müller, carrasco da ditadura. E a terceira, em 1939, São Paulo, novamente torturas, sempre brutais, inimagináveis. De mim nunca tirarão nada.
Só sai em 1945, com a anistia. Sai da cadeia inteiro, confiante na Revolução, dirigente do PCB.
A Revolução sempre foi sua musa, paixão de vida inteira.
Ia ao encontro dos padres. Precisa discutir a situação com eles, ver como organizar a retirada das grandes cidades. Pensa em Carlinhos, o filho, que sabe militante. Tem orgulho dele. Lembra da Bahia de tantos carnavais, que ele ama tanto. Volta lá, assim que puder.
Ainda sente a maresia, o cheiro forte do cais do porto, os trabalhadores dos navios, sua campanha a deputado constituinte pela Bahia, candidato pelo PCB. A eleição. Salvador, Cidade da Bahia, terra da liberdade. Sua terra de tantos carnavais. Como ele gostava de carnavais.
Deputado, seus combates no plenário, a cassação do partido, o governo repressivo de Dutra. Dirigente clandestino novamente. As greves que dirigiu em São Paulo, anos 50. A tristeza, as lágrimas quando das revelações dos crimes de Stálin no XX Congresso da URSS, em 1956. Como era duro ver o herói revelado ditador.
E mais tarde, o golpe se avizinhando contra Goulart. E 1964. E a quarta prisão, maio de 64. O tiro pertinho do coração. Sobrevive. E aqui promete: não me torturarão mais. Morro, mas não serei torturado outra vez. Nunca mais.
Guevara morto em 1967. Eterna admiração. Cuba e a OLAS. Duro, muito duro: romper com o partido de toda a vida. Funda a ALN. A luta armada.
Estava a poucos metros do ponto. Viu o fusca. Os padres, dentro.
Lembra do pai. Augusto. Italiano que chegado à Bahia casou-se com Maria Rita, negra haussá. Dos irmãos Anita, Agostinho, Humberto, Julieta, Teresa, Edwirges e Caetano. Vida feita ali na Rua do Desterro, Baixa dos Sapateiros. Doce lembrança. De uma fraterna, amorosa convivência. Carnavais, volta aos carnavais: Baixa dos Sapateiros, Largo de São Miguel, proximidades do Cine Jandaia, os cordões, blocos de nagô, Bambá sem Dendê, as namoradas na vertigem da folia. Ah, os carnavais, alegria, folia, liberdade, vida.
Ouviu tiros na noite escura, muitos. Caiu. Ainda pensou nela, na musa, Revolução. Era o dia 4 de novembro de 1969. Carlos Marighella, inimigo número um da ditadura militar tornava-se imortal. Herói do povo brasileiro.
Sabe-se só.
Inelutavelmente só.
Solidão que não o maltrata.
Só solidão.
Não é a solidão, com quem sempre conviveu serenamente, que lhe confrange o coração.
São os mortos. Seus mortos.
Seus companheiros mortos. Os tantos em décadas.
E os mortos dos últimos dias. Aqueles que não desistiram de lutar.
E que tombaram massacrados, esquartejados sob mãos assassinas. As mãos sujas de sangue da ditadura.
Pensa em Jonas, comandante Jonas. Apenas o coração dele restara intacto. O resto, despedaçaram. Torturaram-no tanto que só o coração resistira. Só.
Bravo, leal, sensível, corajoso Jonas.
Eterno Jonas.
Não tivera medo. Morrera agora, setembro.
Caminha lentamente. Não sabe por que, mas de repente, lhe vem à mente a Revolução dos Alfaiates. Ou dos Búzios, como se queira. Os quatro mártires enforcados e suas cabeças cortadas e exibidas por muitos dias no centro de Salvador. Para que servissem como exemplo. Para que negro nenhum tentasse de novo rebelar-se contra o poder metropolitano.
A forca de 1799.
Agora esse clima de 1969.
Cento e setenta anos passados.
E qual a diferença?
Vai se interrogando, enquanto anda, enquanto curte a solidão.
Um país difícil esse nosso, de classes dominantes cruéis. Pensa em Canudos, o massacre nos sertões de sua terra.
Com uma ditadura como essa, só luta armada. Não há outro jeito. Repete isso, de si para si, como que a convencer-se de que não há mesmo outras saídas.
Está apreensivo. A palavra é essa: apreensivo. Não teve tempo para conhecer o medo, que naquele momento podia insinuar-se em seu espírito.
Acha interessante pensar nisso: o medo não o visitara até agora. Pensa nisso sem qualquer arrogância. Simples constatação.
Sua apreensão: o cerco apertava-se. Sentia isso no clima pesado de São Paulo, nas mortes seguidas, nas prisões. A Organização estava sob ataque cerrado do inimigo. Sabia, tinha convicção, que o caçavam de modo particular, e que não o poupariam.
Estava marcado para morrer. E isso não o atemorizava.
Era necessário, urgente organizar a retirada das grandes cidades.
Intensificar os preparativos para desencadear a guerrilha rural e a partir daí sublevar o povo brasileiro. Pensa em quantos foram embora do País, a seu conselho.
Ele, não. Não partiria para o exílio. Tinha responsabilidades, noção do seu papel dirigente da revolução brasileira, que se avizinhava.
Quem samba fica, quem não samba vai embora. Gostava de repetir isso.
Ficava, apesar de tudo.
Sentia o cheiro dos cães farejadores, seus dentes afiados, a baba raivosa de cada um deles. Cães como Fleury.
Quando soube do seqüestro do embaixador americano, 4 de setembro, teve certeza de que o torniquete iria se apertar. Sabia que a partir dali as forças repressivas jogariam toda sua força contra a Organização e contra ele.
Celebrou o seqüestro. O comandante Jonas à frente. A mais ousada ação revolucionária contra a ditadura. Sempre dissera que o dever de todo revolucionário era fazer a revolução. Ponto. Mas não tinha dúvidas sobre a avalanche, sobre o terror iminente, que veio, deixando um impressionante rastro de sangue e de dor.
Solidão.
Num relance, como um raio a espantar a solidão, surge Clara em sua mente, amor de toda a vida.
Pensa em Cuba, Fidel. Anima-se no meio da escuridão. Sierra Maestra. Nós também podemos fazer nossa revolução.
Vamos tirar todos os companheiros e companheiras de São Paulo. Vamos organizar nossas forças no campo, mobilizar os camponeses. Levantar o povo brasileiro. Derrubar a ditadura sanguinária. Chegar à democracia e ao socialismo.
O pensamento dá outro giro. Pensa na solidão e na esperança. Gozado: a solidão não lhe retira em momento algum o sentimento da esperança.
Confia profundamente na Revolução.
Confiança nascida já nos tempos de estudante na Bahia. Juracy Magalhães e sua violência e a primeira prisão, 1932. E depois a segunda, 1936, Rio de Janeiro. E as torturas, Filinto Müller, carrasco da ditadura. E a terceira, em 1939, São Paulo, novamente torturas, sempre brutais, inimagináveis. De mim nunca tirarão nada.
Só sai em 1945, com a anistia. Sai da cadeia inteiro, confiante na Revolução, dirigente do PCB.
A Revolução sempre foi sua musa, paixão de vida inteira.
Ia ao encontro dos padres. Precisa discutir a situação com eles, ver como organizar a retirada das grandes cidades. Pensa em Carlinhos, o filho, que sabe militante. Tem orgulho dele. Lembra da Bahia de tantos carnavais, que ele ama tanto. Volta lá, assim que puder.
Ainda sente a maresia, o cheiro forte do cais do porto, os trabalhadores dos navios, sua campanha a deputado constituinte pela Bahia, candidato pelo PCB. A eleição. Salvador, Cidade da Bahia, terra da liberdade. Sua terra de tantos carnavais. Como ele gostava de carnavais.
Deputado, seus combates no plenário, a cassação do partido, o governo repressivo de Dutra. Dirigente clandestino novamente. As greves que dirigiu em São Paulo, anos 50. A tristeza, as lágrimas quando das revelações dos crimes de Stálin no XX Congresso da URSS, em 1956. Como era duro ver o herói revelado ditador.
E mais tarde, o golpe se avizinhando contra Goulart. E 1964. E a quarta prisão, maio de 64. O tiro pertinho do coração. Sobrevive. E aqui promete: não me torturarão mais. Morro, mas não serei torturado outra vez. Nunca mais.
Guevara morto em 1967. Eterna admiração. Cuba e a OLAS. Duro, muito duro: romper com o partido de toda a vida. Funda a ALN. A luta armada.
Estava a poucos metros do ponto. Viu o fusca. Os padres, dentro.
Lembra do pai. Augusto. Italiano que chegado à Bahia casou-se com Maria Rita, negra haussá. Dos irmãos Anita, Agostinho, Humberto, Julieta, Teresa, Edwirges e Caetano. Vida feita ali na Rua do Desterro, Baixa dos Sapateiros. Doce lembrança. De uma fraterna, amorosa convivência. Carnavais, volta aos carnavais: Baixa dos Sapateiros, Largo de São Miguel, proximidades do Cine Jandaia, os cordões, blocos de nagô, Bambá sem Dendê, as namoradas na vertigem da folia. Ah, os carnavais, alegria, folia, liberdade, vida.
Ouviu tiros na noite escura, muitos. Caiu. Ainda pensou nela, na musa, Revolução. Era o dia 4 de novembro de 1969. Carlos Marighella, inimigo número um da ditadura militar tornava-se imortal. Herói do povo brasileiro.
(*) Jornalista, autor de Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar e de Lamarca, o Capitão da Guerrilha. Deputado federal (PT-Bahia).
Camarada Bueres, venho aqui no seu Blog agradecer a sua visita ao "A Norte do Equador"
ResponderExcluirSou um socialista internacionalista e portanto integrado na luta de classes global, contra o capitalismo selvagem, opressor do povo. Abraço.
Saudações revolucionárias