Vladimir Kush, 1965, Russian painter |
Entrevista do historiador Marcelo Badaró Mattos ao jornalista Gabriel Brito, do Correio da Cidadania
Para fazer um balanço do primeiro semestre deste tenso ano político, o Correio da
Cidadania entrevistou o historiador Marcelo Badaró Mattos, em meio a um
recesso parlamentar que parece guardar brigas de peso para agosto. Além
de afirmar que a tendência é vermos a piora do quadro recessivo, o
entrevistado analisou o ‘fenômeno’ Eduardo Cunha e diminuiu o peso de
eventuais desdobramentos da Operação Lava Jato.
“A pauta reacionária de Cunha e seus aliados - a redução da maioridade penal, a regressão nos direitos reprodutivos, a tentativa de dirigir os currículos educacionais e as práticas pedagógicas por um viés claramente reacionário etc. - é perfeitamente funcional ao esforço de disciplinamento e apassivamento de uma força de trabalho submetida a um processo de exploração/expropriação e opressão ampliadas”, afirmou o professor da Universidade Federal Fluminense.
Sobre as investigações de propinas em contratos de obras públicas
realizadas por grandes empreiteiras, Badaró diz que “a Lava Jato serve
tanto aos interesses da oposição, que mantém em pauta a denúncia da
corrupção petista e o fantasma do envolvimento de Lula e Dilma, quanto
ao esforço petista de se apresentar como vítima de um complô tucano, com
ramificações no judiciário e na Polícia Federal”.
Dessa forma, a sociedade só poderia vislumbrar um movimento de
rejeição ao ajuste fiscal com a formação de um polo totalmente crítico
ao governo e suas políticas nocivas aos direitos trabalhistas, algo já
verificável na realidade. “As medidas adotadas nos primeiros seis meses
do segundo mandato de Dilma representam um alinhamento, em momento que a
crise reduz as margens para qualquer compensação social”, diz ele, que
apesar de não descartar retrocessos institucionais, acredita que o
impeachment “não está colocado no imediato, pois no que diz respeito aos
interesses do grande capital o governo tem sido exemplarmente fiel”.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Qual o balanço que você faz do primeiro
semestre na política e economia brasileiras, especialmente no que se
refere às posturas que vêm sendo adotadas pelo governo e pela sua
mandatária?
Marcelo Badaró: O governo Dilma, através da coalizão
partidária liderada pelo PT, foi reeleito após uma disputa muito
polarizada, com uma campanha que procurava imputar ao principal
adversário – Aécio Neves, do PSDB – a ameaça de uma política econômica
recessiva, de mais privatizações e retirada de direitos dos
trabalhadores. Exatamente o que Dilma reeleita, já a partir de dezembro
do ano passado, começou a executar, demonstrando que suas promessas de
campanha não eram nada mais que... Promessas de campanha. Sem dúvida,
Aécio Neves e a coalizão liderada pelo PSDB teriam feito o mesmo se
tivessem sido eleitos.
Isso se explica em grande medida pelo quadro de acentuação dos
impactos da crise capitalista na economia brasileira. Diante da retração
das taxas de lucro, especialmente do chamado “setor produtivo”, o
capital encontra como saídas a busca de mais rendimentos “financeiros”
e, ao mesmo tempo, a ampliação da taxa de exploração sobre os
trabalhadores, expropriando-os de direitos.
Nos dois casos, como gestor da dívida pública/taxa de juros e como
espaço de regulação legal das relações capital/trabalho, o papel do
Estado é fundamental. Os governos liderados pelo PT, desde 2003, nunca
titubearam em alinhar-se com os interesses do capital em todas as
questões decisivas que até aqui enfrentaram e não seria diferente agora.
As medidas adotadas nos primeiros seis meses do segundo mandato de
Dilma representam exemplarmente esse alinhamento, em um momento em que a
crise reduz as margens para qualquer tipo de compensação social. A
elevação da taxa de juros (com a dívida pública ultrapassando a fatia de
50% do orçamento federal destinado a seu pagamento, juros e rolagem), a
retirada de direitos trabalhistas, os cortes do orçamento nas áreas
sociais (especialmente na educação, mostrando a hipocrisia do slogan da
“Pátria Educadora”), são todas políticas que confirmam essa avaliação.
Correio da Cidadania: O que justifica a ‘força’ de Eduardo Cunha neste período?
Marcelo Badaró: Para além da autonomia relativa da
dinâmica parlamentar brasileira - em que um presidente da Câmara pode
ser eleito por fazer mais promessas de vantagens pecuniárias e mordomias
para deputados - há dois elementos que me parecem importantes para
entender o papel atual desse personagem, que ingressou na vida política
sob o apadrinhamento de P.C. Farias.
No plano da superfície do jogo político, Cunha representa os impasses
do “presidencialismo de coalizão”, como costumam chamar os cientistas
políticos, em que os presidentes eleitos, sem maioria parlamentar
exclusiva de seu partido, estabelecem alianças nos moldes mais
fisiológicos (apoio em troca de cargos nos diversos escalões do
Executivo, empresas estatais, agências reguladoras etc., além de
liberação de “emendas parlamentares” e apoio às propostas corporativas
das “bancadas” setoriais, como os “ruralistas” ou os “evangélicos”).
Ele é a expressão de uma “base aliada” que quer maximizar seus ganhos
e benefícios nessa lógica do “é dando que se recebe”. Por outro lado, e
indo além desse aspecto, a pauta reacionária de Cunha e seus aliados - a
redução da maioridade penal, a regressão nos direitos reprodutivos, a
tentativa de dirigir os currículos educacionais e as práticas
pedagógicas por um viés claramente reacionário etc. - é perfeitamente
funcional ao esforço de disciplinamento e apassivamento de uma força de
trabalho submetida a um processo de exploração/expropriação e opressão
ampliadas.
Não à toa, mesmo com todas as chantagens políticas ao Planalto, a
pauta da retirada de direitos dos trabalhadores é toda encaminhada
positivamente por Cunha e os seus.
Correio da Cidadania: O que espera do retorno do recesso
parlamentar, em agosto, quando várias brigas políticas, voltadas aos
mais diversos interesses, parecem anunciadas? O que ocorrerá, mais
especificamente, a seu ver, com o PMDB, que não abraçou o rompimento de
Cunha com o governo?
Marcelo Badaró: O PMDB, desde a redemocratização, é
um partido que orbita sempre em torno do Executivo, cumprindo o papel de
fornecer a maioria parlamentar necessária, em todo um mandato ou nos
momentos-chave, em troca do controle de determinadas fatias da máquina
pública. No quadro atual, ampliar a chantagem sobre o Executivo para
obter fatias maiores do seu “botim” faz sentido, mas romper
completamente com o governo só se justificaria se a correlação de forças
se alterasse a ponto de uma queda de Dilma, o que não parece ser o
“plano A” das classes dominantes neste momento.
Correio da Cidadania: Acredita que os desdobramentos da
Operação Lava Jato, que parecem atingir cada vez mais quadros políticos
de peso, poderão arrefecer os ânimos e produzir “acordos de paz”?
Marcelo Badaró: Apesar da novidade de um processo
policial/judiciário de investigação da corrupção chegar aos corruptores,
não acredito que a Operação Lava Jato terá papel determinante nos
desdobramentos do quadro político brasileiro atual. Ela serve tanto aos
interesses da oposição, que mantém em pauta a denúncia da corrupção
petista e o fantasma do envolvimento de Lula e Dilma, quanto ao esforço
petista de se apresentar como vítima de um complô tucano, com
ramificações no judiciário e na Polícia Federal.
Correio da Cidadania: O que espera das manifestações, à esquerda e à direita”, agendadas para agosto?
Marcelo Badaró: As manifestações de março
demonstraram, entre outras coisas, que a direita política, pela primeira
vez desde os tempos do governo Goulart, resolveu assumir o papel de
promover mobilizações de rua como estratégia política. No que foi
apoiada/financiada pelos novos/velhos aliados externos (os links dos
“líderes” da “nova” direita brasileira com organizações estadunidenses
têm sido demonstrados em diversas análises) e, principalmente, insuflada
pelo enorme esquema de cobertura televisiva das Organizações Globo e
outros veículos de comunicação empresariais. Algo que representa, sim,
uma ameaça séria de retrocesso político, que não podemos desprezar.
No entanto, o fracasso das chamadas posteriores de mobilização
daquelas mesmas forças demonstrou que não é fácil reproduzir muitas
vezes aquele modelo. Por outro lado, por parte das forças que apoiam o
governo, é mais difícil ainda mobilizar bases sociais organizadas da
classe trabalhadora com a paradoxal proposta de combater as políticas de
“austeridade” implementadas pelo governo liderado pelo PT e, ao mesmo
tempo, defender esse mesmo governo de supostas ameaças golpistas vindas
da direita.
Manifestações verdadeiramente à esquerda dependem da criação de um
polo autônomo em relação ao governo, e resolutamente crítico da direita
reacionária, que combata com consequência todas as medidas que retiram
direitos dos trabalhadores e os cortes no orçamento social, apontando
para a necessidade de romper com a lógica da dívida e desnudando o
sentido de classe (a favor do capital) do governo Dilma e da oposição de
direita.
Correio da Cidadania: O que caberia no momento aos grupos e
movimentos favoráveis a um projeto alternativo? Quais seriam esses
grupos e qual a possibilidade de partirem para uma ação conjunta?
Marcelo Badaró: Neste momento, em que acontecem
greves de servidores públicos federais e setores estaduais, como as
Universidades baianas (após as greves de profissionais da educação em
diversos estados, com destaque para o Paraná), o primeiro passo é cerrar
fileira em apoio a esses movimentos, que indicam uma primeira e
importantíssima onda de resistência às políticas de austeridade.
O passo seguinte é a construção necessária e difícil de uma greve
geral no país. Em meio a esses processos de luta poderiam emergir
movimentos, processos organizativos e lideranças capazes de criar um
polo combativo e classista a unificar o sindicalismo e outros movimentos
sociais da classe trabalhadora do campo e da cidade.
Do ponto de vista das bases sociais, o desafio é aglutinar os
trabalhadores organizados - não apenas no pequeno setor mais autônomo e
combativo do sindicalismo brasileiro, mas disputando as bases dos
burocratas sindicais, governistas ou não - com os amplos setores da
classe não representados pelo movimento sindical, que manifestaram de
forma muito explícita seu descontentamento durante as “jornadas de
junho” de 2013.
Correio da Cidadania: Como acredita que caminhará este
mandato de Dilma, no médio e longo prazo, em especial com os ventos de
impeachment pairando vez ou outra nos debates?
Marcelo Badaró: A depender das forças políticas que
apoiam o governo e da oposição de direita, a tendência é de
aprofundamento das políticas de austeridade, que já estão conduzindo o
país ao desastre social - com a rápida elevação das taxas de desemprego,
a queda nos rendimentos do trabalho e o desmanche dos serviços
públicos, estrangulados pelos cortes de verba. A hipótese do impeachment
não pode ser descartada, especialmente se o crescimento do
descontentamento com tal desastre social for dirigido pela perspectiva
da direita e apresentado como um mero resultado da “corrupção” petista.
No entanto, ela não está colocada no plano imediato, pois no que diz
respeito aos interesses imediatos do grande capital o governo Dilma tem
sido exemplarmente fiel. Como disse um amigo, diante do anúncio de mais
um período de recorde de lucros de um grande banco: “é por essas e por
outras que não vai ter impeachment”.
Do lado das forças do trabalho, a interrupção do ciclo da austeridade
dependerá essencialmente de uma nova onda de lutas sociais, capazes de
gerar um outro polo organizado da classe trabalhadora, que apresente-se
como alternativa de classe às políticas do capital.
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