Stálin e o Gulag soviético |
"Normalmente,
os sistemas de ideias que exigem a eliminação por inteiro de culturas e
povos, com o intuito de instaurar uma visão purificada do mundo, são
aqueles baseados em religiosidade extrema e teorias raciais. Mas, desde o
colapso da União Soviética, tem ocorrido um acerto de contas coletivas
com os grandes crimes cometidos em nome do comunismo. Os arquivos do
sistema soviético de informação foram abertos aos pesquisadores, que
contaram os mortos - por fomes forçadas, campos de concentração ou
assassinato.
[...]
Mas
o que dizer da cruzada contemporânea para libertar os mercados
mundiais? Os golpes, guerras e chacinas perpetradas para instalar e
manter regimes favoráveis aos interesses das corporações nunca foram
tratados como crimes capitalistas. Ao contrário, têm sido retratados
como zelos excessivos de certos ditadores, nas frentes de batalha da
Guerra Fria e da Guerra ao Terror atual. Quando os oponentes mais
aguerridos do modelo das corporações são sistematicamente eliminados,
como na Argentina na década de 1970 ou no Iraque hoje, essa eliminação é
explicada como parte da guerra suja contra o comunismo ou o terrorismo -
jamais como uma batalha pelo avanço do capitalismo puro.
Argentina, anos 1970 |
[...]
Pinochet e seu guru, Milton Friedman |
Keynes
propôs (...) esse tipo de economia mista e regulada após a Grande
Depressão, uma revolução nas políticas públicas que criou o New Deal e
gerou transformações similares em todo o mundo. Foi exatamente contra
esse sistema de conciliação, controle e equilíbrio que a
contra-revolução de [Milton] Friedman foi deslanchada, buscando
desmantalá-la em todos os países. Desse ponto de vista, a versão do
capitalismo idealizada pela Escola de Chicago possui algo em comum com
outras ideologias perigosas: o desejo declarado por uma pureza
inatingível, por um espaço vazio onde construir uma sociedade-modelo
constantemente reelaborada.
O
anseio pelos poderes divinos de criação total é a razão pela qual os
ideólogos do livre mercado são tão apegados à crises e desastres. Uma
realidade não-apocalíptica simplesmente não abarca suas ambiações. O que
animou a contra-revolução de Friedman, por 35 anos, foi sua atração por
uma espécie de liberdade e de oportunidade que só se apresenta em
situações de mudanças calamitosas - quando as pessoas, com seus hábitos
arraigados e demandas insistentes, são tiradas do caminho -, momento em
que a democracia parece praticamente impossível.
Aqueles
que acreditam na doutrina do choque estão convencidos de que somente
uma grande ruptura - uma inundação, uma guerra, um ataque terrorista -
pode criar o tipo de tela branca, grande e limpa que eles tanto
procuram. É nesses momentos maleáveis, quando estamos psicologicamente
fragilizados e fisicamente esgotados, que esses artistas do real
esfregam as mãos e iniciam seu trabalho de refazer o mundo.
[...]
Algumas
das violações mais infames dos direitos humanos de nossa era, que
tenderam a ser encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes
antidemocráticos, foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o
público, ou ativamente empregadas a fim de preparar o terreno para a
introdução das 'reformas' radicais de livre mercado. Na Argentina da
década de 1970, o 'desaparecimento' de trinta mil pessoas sob o governo
da junta militar, muitas delas ativistas de esquerda, fez parte da
imposição ao país das políticas da Escola de Chicago, do mesmo modo que o
pavor foi parceiro para um tipo similar de metamorfose econômica no
Chile.
Yeltsin bombardeia o Parlamento em 1993
|
Na
China, em 1989, foram o choque do massacre da praça Tiananmen e as
prisões subsequentes de milhares de manifestantes que facilitaram ao
Partido Comunista a conversão de amplas partes do país em uma grande
zona de exportação, suprida com uma força de trabalho excessivamente
aterrorizada para reivindicar seus direitos.
Na Rússia, em 1993, foi a
decisão de Boris Yeltsin de enviar os tanques para bombardear o
Parlamento e prender os líderes da oposição que abriu caminho para a
escalada de privatizações e criou os notórios oligarcas do país."
Naomi Klein, A Doutrina do Choque - A ascensão do capitalismo de desastre
Nenhum comentário:
Postar um comentário