Qual a diferença? |
O escândalo da espionagem mostra que De Gaulle estava certo: os EUA não têm amigos, têm interesses
Washington, 1972. A sede do Partido Democrata dos Estados Unidos é
invadida. Os arrombadores pertenciam aos círculos do presidente Richard
Nixon. A tentativa criminosa de adquirir informações sobre a estratégia
de campanha eleitoral do grupo oposicionista acabaria custando o cargo
ao chefe de Estado republicano, dois anos mais tarde.
Desde então, o escândalo de Watergate constitui uma mancha vergonhosa
na cultura política dos EUA. E há quatro décadas o nome é usado como
sinônimo para descalabros políticos. Portanto, não é acaso o escândalo
de espionagem pela Agência de Segurança Nacional (NSA) americana ter
sido logo apelidado em Berlim como “Handygate” (“Celulargate”, em
tradução livre).
Mas quem vai querer comparar a escuta do telefone da chanceler
federal Angela Merkel ao escândalo de Watergate? E, no entanto, em
princípio a comparação é legítima: na era digital, não é mais preciso
pé-de-cabra e lanterna para se arrancarem informações. Os modos de
obtenção são outros, o objetivo é o mesmo.
Os americanos fazem tudo o que é possível, mesmo que seja ilegal ou
imoral. É o que eles mesmos dizem de si e de suas pretensões de poder.
Nesse aspecto, Barack Obama é, acima de tudo, o principal representante
dos interesses de seu país – e é por essa perspectiva que olha o mundo. É
bem como declarou certa vez o então presidente da França, Charles de
Gaulle: os Estados Unidos não têm amigos, têm interesses.
E os interesses de Washington são globais. Até onde se sabe, os EUA
possuem cerca de 80 centros de interceptação de comunicações ao redor do
mundo, dos quais 19 na Europa. Dois cabem à Alemanha, sendo um Berlim, o
outro em Frankfurt, centro financeiro e bancário do país. Portanto, um
local onde é difícil justificar o monitoramento com o combate ao
terrorismo. Tudo leva antes a crer que a intenção seja espionar os
círculos das altas finanças. E isso é traição.
A Alemanha tem muito a agradecer aos EUA. O Plano Marshall é um dos
motivos por que o país se tornou o gigante econômico que é, há décadas.
Diante desse pano de fundo histórico, a República Federal da Alemanha
– tanto antes como depois da reunificação do país – nunca se emancipou
politicamente de Washington por completo. Quase sempre o país se colocou
do lado do grande irmão, incondicionalmente. O “não” do ex-premiê
Gerhard Schröder à guerra do Iraque foi uma exceção na história recente.
O escândalo de espionagem é, agora, a chance para uma mudança.
Justamente por a relação Alemanha-Estados Unidos ser tão intensa e
indissolúvel, a reação de Berlim deve ser radicalmente nova, no tom e
nos atos.
As oportunidades para uma objeção decidida por parte da Alemanha
existem. Por exemplo, nas negociações para um tratado de livre comércio
entre a União Europeia e os EUA; ou na iniciativa teuto-brasileira de
obter uma resolução da ONU contra os americanos.
Independente das consequências, a mensagem deve ser: “Agora chega!”
Pois se – passados 70 anos do fim da guerra e 23 da unificação da
Alemanha – Washington insiste em se comportar como um invasor digital,
então chegou a hora colocar a amizade em questão.
Do DCM / O texto acima foi publicado originalmente no site DW Brasil.
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