Moisés e as tábuas da Lei: um Deus implacável |
Um
amigo reagiu furioso a uma postagem que fiz no Facebook – era uma
charge ironizando uma citação particularmente belicosa do Velho
Testamento da Bíblia (Números 31: 17-18). Bem, todos que se deram ao
trabalho de ler o livro sagrado dos cristãos, particularmente o Velho
Testamento, sabe que é possível encontrar aos montes citações
semelhantes, em que um Deus vingativo e ciumento exige dos homens provas
de seu amor incondicional por Ele, pedindo sangue e até matança de
inocentes. Meu amigo argumenta que a citação está descontextualizada,
que o Novo Testamento é diferente e que ateus e agnósticos, quando
atacam as religiões, se igualam aos fanáticos religiosos que discriminam
homossexuais e não-crentes.
Mas o Estado brasileiro não é laico? |
Respondo
que, num país como o Brasil, em que ateus e agnósticos são
estigmatizados como pessoas sem ética nem moral, em que candidatos a
cargos eletivos já tiveram que esconder sua condição de não-crentes para
serem aceitos pelo eleitorado, em que crucifixos são pendurados em
repartições públicas violando a laicidade do Estado, e em que posições
contrárias aos dogmas cristãos – principalmente católicos –, como por
exemplo pesquisas com células-tronco, casamento de pessoas do mesmo
sexo, aborto e AIDS, são vistas como heresia, é preciso partir para o
confronto. Os não-crentes precisam “sair do armário”, como disse Richard
Dawkins, e defender suas posições.
Ao
fazer isso, eles estarão também defendendo a liberdade de expressão.
Sim, porque, como bem sabiam os Pais Fundadores dos Estados Unidos, para
garantir a liberdade religiosa e de expressão, o Estado deve ser
impedido de promover qualquer confissão religiosa. Aqui, os ateus e
agnósticos precisam demarcar terreno, conquistar espaço na sociedade,
expor suas idéias – e isso certamente ferirá suscetibilidades
religiosas. Talvez depois dessa etapa seja possível encontrar
denominadores comuns entre crentes e não-crentes, como fizeram Umberto
Eco e D. Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, no memorável diálogo
epistolar reproduzido no livro “Em que crêem os que não crêem”.
À parte isso, ofender
ou ironizar religiões pode não ser de bom tom, mas é um direito
democrático líquido e certo. Mas ainda é perigoso e não está totalmente
assegurado. Quando Salman Rushdie escreveu Os Versículos Satânicos, no final dos anos 1980, o aiatolá Khomeini se arvorou o direito de emitir uma fatwa
(decreto religioso) pedindo a morte dele. O escritor teve que ficar
escondido em Londres por quase uma década. Quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten
publicou uma série de 12 caricaturas do profeta Maomé como terrorista,
em 2005, manifestantes e governos islâmicos de todos os cantos do
planeta promoveram ruidosas manifestações e fizeram pressões pedindo a
proibição de publicações semelhantes e a punição do jornal. Temendo
ferir “suscetibilidades islâmicas” – afinal, a Arábia Saudita, maior
produtora de petróleo do mundo, é um Estado teocrático islâmico –,
vários governos ocidentais, laicos e democráticos, condenaram
publicamente as charges. O próprio governo da Dinamarca criticou o
jornal, que acabou pedindo desculpas públicas aos muçulmanos. Duas
décadas atrás, grupos católicos fizeram pressão para a proibição do
filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard (conseguiram aqui
no Brasil, durante o governo de José Sarney). Há poucos anos, a
organização católica ultraconservadora Opus Dei tentou proibir o filme Código da Vinci.
Se para evitar ferir suscetibilidades religiosas tivermos que
censura obras de arte ou simplesmente espetáculos, o que restará da
liberdade de expressão e de pensamento tão duramente conquistada,
principalmente abaixo do Equador? Não podemos esquecer Voltaire ("Não
concordo com nada do que dizes, mas lutarei até a morte pelo teu direito
de dizê-lo"), Rosa Luxemburgo ("a liberdade é a liberdade de quem pensa
de modo diferente de nós") e George Orwell ("se a liberdade significa
alguma coisa, é o direito de dizer o que as pessoas não querem ouvir").
Rushdie: condenado à morte por blasfêmia |
Ayaan Hirsi Ali: contra a intolerância religiosa |
Por
isso, creio que o multiculturalismo, por mais bem intencionado que
possa ser, é um equívoco. Veja-se o caso da escritora e política
somali nacionalizada holandesa Ayaan Hirsi Ali. No seu país de origem,
ela foi submetida a uma infibulação do clitóris, numa cerimônia
religiosa presidida por sua avó. A família deixou a Somália em 1975,
quando ela tinha seis anos. Em 1992, Ayaan conseguiu entrar na Holanda,
onde recebeu o status de refugiada, começou a estudar e a se envolver na
política. Ela fugira de um casamento arranjado por seu pai, prática
comum na tradição clânica da Somália e de outros países. Mas na Holanda,
Ayaan começou a enfrentar a pressão de somalis ali residentes, que
queriam que ela se submetesse aos costumes culturais e religiosos - no
caso, islâmicos - da comunidade. Mas ela não aceitava isso e começou a
denunciar a pressão. E o pior é que o Estado holandês protegia a
opressão familiar sob a bandeira do multiculturalismo, o que na
prática significava fazer vista grossa a práticas medievais como excisão
de clitóris, casamentos arranjados e submissão da mulher ao homem.
Isso
é tolerância? Ou uma forma sutil de discriminação travestida de
comportamento politicamente correto? Ao isolar imigrantes em verdadeiros
"bantustões culturais" nos países desenvolvidos, o multiculturalismo
europeu compactua com a opressão familiar e religiosa e renega o valor
universal dos direitos humanos. Enquanto isso, os europeus brancos e
cristãos podem desfrutar das liberdades civis e individuais.
Postado por Cláudio Camargo
Postado por Cláudio Camargo
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