"Seis meses atrás, emergi das sombras da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos EUA para me posicionar diante da câmera de um jornalista. Compartilhei com o mundo provas de que alguns governos estão montando um sistema de vigilância mundial para rastrear secretamente como vivemos, com quem conversamos e o que dizemos.
Fui para diante daquela câmera de olhos abertos, com a
consciência de que a decisão custaria minha família e meu lar e colocaria minha
vida em risco. O que me motivava era a ideia de que os cidadãos do mundo
merecem entender o sistema dentro do qual vivem.
Meu maior medo era que ninguém desse ouvidos ao meu aviso.
Nunca antes fiquei tão feliz por ter estado tão equivocado. A reação em certos
países vem sendo especialmente inspiradora para mim, e o Brasil é um deles, sem
dúvida.
Na NSA, testemunhei com preocupação crescente a vigilância
de populações inteiras sem que houvesse qualquer suspeita de ato criminoso, e
essa vigilância ameaça tornar-se o maior desafio aos direitos humanos de nossos
tempos.
A NSA e outras agências de espionagem nos dizem que, pelo
bem de nossa própria "segurança" --em nome da "segurança"
de Dilma, em nome da "segurança" da Petrobras--, revogaram nosso
direito de privacidade e invadiram nossas vidas. E o fizeram sem pedir a
permissão da população de qualquer país, nem mesmo do [país] delas.
Hoje, se você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode
rastrear onde você se encontra, e o faz: ela faz isso 5 bilhões de vezes por
dia com pessoas no mundo inteiro.
Quando uma pessoa em Florianópolis visita um site na
internet, a NSA mantém um registro de quando isso aconteceu e do que você fez
naquele site. Se uma mãe em Porto Alegre telefona a seu filho para lhe desejar
sorte no vestibular, a NSA pode guardar o registro da ligação por cinco anos ou
mais tempo.
A agência chega a guardar registros de quem tem um caso
extraconjugal ou visita sites de pornografia, para o caso de precisar sujar a
reputação de seus alvos.
Senadores dos EUA nos dizem que o Brasil não deveria se
preocupar, porque isso não é "vigilância", é "coleta de
dados". Dizem que isso é feito para manter as pessoas em segurança. Estão
enganados.
Existe uma diferença enorme entre programas legais,
espionagem legítima, atuação policial legítima --em que indivíduos são vigiados
com base em suspeitas razoáveis, individualizadas-- e esses programas de
vigilância em massa para a formação de uma rede de informações, que colocam
populações inteiras sob vigilância onipresente e salvam cópias de tudo para
sempre.
Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o
terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e
manipulação diplomática. Pela busca de poder.
Muitos senadores brasileiros concordam e pediram minha ajuda
com suas investigações sobre a suspeita de crimes cometidos contra cidadãos
brasileiros.
Expressei minha disposição de auxiliar quando isso for
apropriado e legal, mas, infelizmente, o governo dos EUA vem trabalhando
arduamente para limitar minha capacidade de fazê-lo, chegando ao ponto de obrigar
o avião presidencial de Evo Morales a pousar para me impedir de viajar à
América Latina!
Até que um país conceda asilo político permanente, o governo
dos EUA vai continuar a interferir na minha capacidade de falar.
Seis meses atrás, revelei que a NSA queria ouvir o mundo
inteiro. Agora o mundo inteiro está ouvindo de volta e também falando. E a NSA
não gosta do que está ouvindo.
A cultura de vigilância mundial indiscriminada, que foi
exposta a debates públicos e investigações reais em todos os continentes, está
desabando.
Apenas três semanas atrás, o Brasil liderou o Comitê de
Direitos Humanos das Nações Unidas para reconhecer, pela primeira vez na
história, que a privacidade não para onde a rede digital começa e que a
vigilância em massa de inocentes é uma violação dos direitos humanos.
A maré virou, e finalmente podemos visualizar um futuro em
que possamos desfrutar de segurança sem sacrificar nossa privacidade.
Nossos direitos não podem ser limitados por uma organização
secreta, e autoridades americanas nunca deveriam decidir sobre as liberdades de
cidadãos brasileiros.
Mesmo os defensores da vigilância de massa, aqueles que
talvez não estejam convencidos de que tecnologias de vigilância ultrapassaram
perigosamente controles democráticos, hoje concordam que, em democracias, a
vigilância do público tem de ser debatida pelo público.
Meu ato de consciência começou com uma declaração: "Não
quero viver em um mundo em que tudo o que digo, tudo o que faço, todos com quem
falo, cada expressão de criatividade, de amor ou amizade seja registrado. Não é
algo que estou disposto a apoiar, não é algo que estou disposto a construir e
não é algo sob o qual estou disposto a viver."
Dias mais tarde, fui informado que meu governo me tinha
convertido em apátrida e queria me encarcerar. O preço do meu discurso foi meu
passaporte, mas eu o pagaria novamente: não serei eu que ignorarei a
criminalidade em nome do conforto político. Prefiro virar apátrida a perder
minha voz.
Se o Brasil ouvir apenas uma coisa de mim, que seja o seguinte:
quando todos nos unirmos contra as injustiças e em defesa da privacidade e dos
direitos humanos básicos, poderemos nos defender até dos mais poderosos dos
sistemas."
Edward Snowden
Tradução de Clara Allain
Folha de São Paulo
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