Se
dependesse dos nossos conservadores, o Brasil não teria se
industrializado e estaria na rabeira das nações. E eles ainda estão
firmes e fortes, pontificando na grande mídia. Essa análise mergulha no
pathos da nossa elite dirigente, desde sempre voltada de costas para o
Brasil.
O complexo de vira-latas, ontem e hoje
por Roberto Amaral (*)
O complexo de vira-latas, ontem e hoje
por Roberto Amaral (*)
“A
ponte Rio-Niterói é, portanto, uma linda obra turística, cuja
prioridade não se justifica em um país de escassos recursos que se
defronta com necessidades berrantes que aí estão nesta mesma região do
País, clamando pela ação do Governo”.
(Eugênio Gudin, O Globo, 2/3/1974)
Nelson Rodrigues |
Impecável a definição, cujas raízes nos levam à empresa colonial e ao escravismo, à dependência cultural às diversas Cortes que sobre nós reinaram e ainda reinam.
Peca,
porém, o teatrólogo genial e reacionário militante ao atribuir tal
“complexo” a um fenômeno nacional, como se fosse ele um sentimento de
nosso povo, de nossa gente, pois nada é mais povo brasileiro do que o
torcedor de futebol.
Esse
sentimento existe, mas regado pela classe dominante brasileira, desde a
Colônia, que sempre viveu de costas para o país e com os sonhos, as
vistas e as aspirações voltadas para a Europa. Terra de “índios
desafeitos ao trabalho”, de “negros manimolentes e banzos” e “europeus
de segunda classe”, nosso destino, traçado pelos deuses, era a de
eternos coadjuvantes. História própria, industrialização, destino de
potência… ah, isso jamais!
Nem no futebol, pois havíamos perdido as copas de 1950 e 1954 justamente porque éramos (eram nossos jogadores) um povo mestiço.
Pensar grande, pensar na frente, projetar-se no mundo e na História, isso é coisa de visionários ou políticos “populistas”.
Tal
cantochão reacionário foi construído pelos pensadores dos interesses
dominantes (desde os que no Império advogavam o “embranquecimento da
raça” e por isso, só por isso, chegaram a admitir a abolição da
escravatura), e ainda hoje é o refrão da direita impressa.
Para
essa gente, o destino de nosso país era o de exportador de café e
importador de manufaturas (“porque produzir aqui se podemos importar o
produto estrangeiro, melhor e mais barato?”), e agora é o de exportador
de soja e minério in natura. Amanhã, que os fados nos protejam, o
destino que nos devotam é de exportadores de óleo bruto, como o Iraque, o
Irã, a Venezuela, a Arábia Saudita…
Eles têm saudades da política do "café com leite" |
O
único engenho concedido ao nosso povo é o carnaval, comercializado pela
tevê monopolizada. Mas dizem ao nosso povo os jornalões que não temos
capacidade de construir meia dúzia de estádios.
Mesmo
o futebol entrou em questionamento, depois que o Santos caiu de quatro
nos gramados japoneses. A grande imprensa agora prescreve que o futebol
brasileiro precisa reaprender com o catalão, repleto de atletas
estrangeiros, inclusive, brasileiros…
Um
bom representante desse pensamento conservador – que no Império ceifou
pioneiros como Mauá – é Eugênio Gudin, criador (ao lado de Octavio
Gouvêa de Bulhões) do ensino da economia em nosso país, e fundador do
Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas.
Monetarista e anti-desenvolvimentista, anti-varguista e
anti-juscelinista, iluminador do moderno neoliberalismo brasileiro,
combatia a intervenção do Estado na economia, o apoio (com incentivos ou
o que fosse) à industrialização, e defendia com unhas e dentes,
desconsiderando a realidade objetiva, o equilíbrio financeiro e a
austeridade fiscal.
Gudin,
como a maioria dos economistas, gostava de falar em “custo de
oportunidade”, que procura medir o que poderia ter sido feito em saúde,
educação e mais isso e mais aquilo, com os gastos de determinada obra ou
melhoramento. Por exemplo, quanto poderíamos ter investido em saúde se
não investíssemos na transposição do São Francisco, em que pese ao preço
de deixar à míngua milhões de brasileiros do semi-árido nordestino…
Por
isso, Gudin, como a classe dominante e a direita impressa, foram contra
Brasília e mesmo contra a ponte Rio-Niterói, e são, agora, contra o
trem-bala que ligará Campinas-São Paulo ao Rio de Janeiro.
Ainda
na ditadura, um falecido jornalão carioca insurgiu-se contra as obras
do metrô em nossa cidade, sob o tacanho argumento de “que ainda não
haviam sido esgotadas as possibilidades do trânsito de superfície”.
Chateaubriand,
nosso Cidadão Kane, mobilizou sua cadeia de jornais e rádios para
combater os investimentos da União na triticultura gaúcha “porque era
muito mais barato importar trigo dos EUA’”, que então renovavam seus
estoques de guerra.
Ora,
em país que de tudo carece, tudo é urgente e igualmente tudo é adiável.
Mais importante do que o “custo de oportunidade” é a oportunidade do
investimento, ainda que signifique o atraso de obras e serviços
“inadiáveis”.
Getúlio Vargas criou a Petrobras |
Assim
foram os investimentos dos anos 50 na Petrobras (que Gudin e outros
consideravam um desperdício, até por que “o Brasil não possuía
petróleo”) e a seguir os investimentos da estatal em pesquisa, de que a
prospecção em águas profundas é apenas um dos frutos. Aos míopes daquele
então, pergunto: que seria o Brasil de hoje dependente da importação de
petróleo? Que será o Brasil de amanhã sem energia elétrica?
Aí
então é que não podemos pensar em saúde e educação universais. Mas,
para os áulicos do conservadorismo, tudo o que significa investimento
com vistas ao futuro deve ser adiado, como supérfluo. Daí o
desmantelamento tecnológico de nossas forças armadas, daí o atraso da
indústria nuclear, daí o atraso na indústria espacial, daí o atraso na
produção de fármacos, na recuperação das ferrovias.
Paremos aqui, pois o rol é interminável.
(*) Esta matéria foi originalmente publicada em 23 de dezembro de 2011, quando Roberto Amaral ainda era ex-ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula.
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