“Financiamento empresarial de campanha é incompatível com a democracia”, diz Jorge Hage
Há
dez anos na Controladoria Geral da União (CGU), primeiro como
secretário-executivo e desde 2006 como chefe do órgão fiscalizador do
uso de recursos públicos federais, o baiano Jorge Hage Sobrinho
desenvolveu uma visão privilegiada do sistema político brasileiro que
lhe dá certeza: o poder econômico tem muita e má influência. O peso
quase absoluto das doações feitas por empresas para campanhas, diz o
ministro, deforma a democracia. Leva a classe política a trabalhar para
os financiadores, não para os eleitores, e com isso gera o grosso da
corrupção.
A
crua avaliação ajuda a entender por que o Congresso resiste a votar uma
reforma política que proíbe doações empresariais para campanhas e as
substituiria por dinheiro reservado nos cofres públicos para uma espécie
de investimento na democracia. Também explica por que esse mesmo
Congresso faz corpo mole há três anos diante de uma lei que expõe a
constrangimentos e punições aquelas empresas que forem pegas comprando
funcionários públicos.
Leia mais:
Megavazamento de documentos expõe paraísos fiscais
Lula: “nós queremos comparação, inclusive sobre corrupção”
Peemedebismo à prova
A
aprovação de uma lei contra corruptores foi um compromisso assumido em
2000 pelo Brasil perante a Organização para a Cooperação e do
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 1997, a OCDE firmara uma convenção,
ratificada por 39 países, que buscava conter a prática de suborno por
parte de empresas. O alvo eram as multinacionais que pagavam propinas
fora do país da matriz, mas o acordo estimulou a adoção de legislações
com enfoque doméstico.
É
o caso da proposta no Congresso brasileiro. Pelo projeto, uma empresa
corruptora poderia ser punida pelo governo sem necessidade de julgamento
na Justiça, com penas como multa com base no faturamento, expiação da
culpa em praça pública via publicidade do nome do corruptor e veto à
presença em licitações, por exemplo. “Essa lei permite atingir o
patrimônio da empresa e recuperar o dinheiro para os cofres públicos,
que é realmente o que faz diferença, o que realmente tem capacidade de
inibir a corrupção”, diz Hage.
A seguir, a entrevista concedida pelo ministro a CartaCapital na terça-feira 9, Dia Internacional de Combate à Corrupção.
CartaCapital: Existe influência excessiva do poder econômico na política brasileira?
Jorge
Hage: Não tenho nenhuma dúvida. E será assim enquanto tivermos o
financiamento empresarial das campanhas e dos partidos. Não digo nem
financiamento privado, porque se fosse um financiamento privado
amplamente pulverizado entre pessoas físicas, ainda seria algo
palatável, mais compatível com um sistema realmente democrático. Mas
como é um financiamento essencialmente empresarial, com grandes doações
de grandes grupos, a incompatibilidade com o sistema democrático para
mim é algo óbvio. Deixei a política eleitoral por isso. Cheguei à
conclusão de que é inviável [disputar eleições] para quem não pretenda
aderir a este financiamento. Desde que vim para a CGU trabalhar no
combate à corrupção, a cada dia me convenço mais de que o financiamento
empresarial está na raiz mais profunda da corrupção. Mas é muito difícil
a proposta do financiamento público lograr êxito.
CC: A corrupção é a principal conseqüência do financiamento privado?
JH:
Não é apenas em corrupção que se reverte a má influência do poder
econômico, é também através do lobby. Pode implicar muitas vezes uma
influência direta de segmentos econômicos nas decisões públicas. Talvez
não seja justo rotular isso como corrupção, mas na minha opinião é uma
influência ilegítima. Veja um exemplo nos Estados Unidos. Há uma
dificuldade enorme de aprovar medidas de desarmamento mesmo diante da
matança por loucos que saem metralhando. Boa parte da população pede o
controle da venda de armas, mas o governo não consegue aprovar devido ao
lobby da indústria armamentista.
CC:
Quer dizer, mesmo que não haja irregularidade, o sistema está montado
em cima de uma estrutura que não é a melhor do ponto de vista da
democracia.
JH:
Com certeza. Até onde é possível você chegar a ter sistemas
democráticos isentos dessas influências é a grande questão posta no
mundo inteiro. É imperioso buscar caminhos de reduzir as influências não
democráticas, que não correspondem ao ideal “um homem, um voto”. Temos
de continuar nos esforçando para aprimorar o sistema democrático.
CC:
O senhor diria que a dimensão da corrupção ativa fica escanteada no
debate público também por isso, porque nela está a digital dos
financiadores de campanha?
JH:
Sem dúvida. É muito difícil aprimorar a legislação mas também é difícil
aplicar mecanismos que já existem. Aqui na CGU partimos de uma tradição
e uma cultura que dificilmente aplicavam punições. E as que eram
aplicadas, voltavam-se quase que exclusivamente para dentro do balcão,
para o lado passivo. Para punir o lado ativo, o lado da oferta da
corrupção, nós começamos do zero. E temos instrumentos muito parcos
disponíveis na legislação, só a declaração de inidoneidade de empresa
corruptora, o que a impede de participar de licitações, e a suspensão
temporária dela. Outras penas, como multas contratuais, são ridículas,
não têm poder de inibir a corrupção. Nós precisamos de uma lei de
responsabilização civil e administrativa dos corruptores. Ela vai
permitir a punição do corruptor baseada na responsabilidade objetiva da
empresa, independentemente da prova da culpa de um diretor, um preposto.
Ela eliminaria por exemplo as discussões que existiram no caso Delta
[empreiteira alvo da CPI do Cachoeira]: “Ah, foi um ato de um diretor
regional, ele não estava autorizado pela direção nacional”. A
responsabilidade objetiva implica responsabilizar a empresa
independentemente de quem praticou o ato e se houve dolo.
CC: Essa lei está parada no Congresso há três anos. A não votação dela é resultado da influência do poder econômico?
JH:
Claro. Temos um relator [deputado Carlos Zarattini, do PT de São Paulo]
comprometido com o projeto, mas ele encontra enormes resistências de
determinados setores das bancadas, não preciso nominar quais são. Já
houve sucessivas negociações, cedemos os anéis para não ceder os dedos,
abrimos mão de inúmeros dispositivos que considerávamos importantes
porque é mais importante ainda o Brasil ter essa lei. O Brasil vai ficar
numa situação muito constrangedora agora em novembro, que é o prazo da
nova avaliação pela OCDE. O Brasil é signatário de uma convenção da OCDE
contra o suborno nacional e transnacional e se comprometeu a adotar
essa lei. A grande maioria dos países já têm essas leis, e há muito
tempo. Não estou falando só de EUA, Inglaterra, França, países como
Grécia, Itália e tantos outros também têm. Hoje o que se discute na OCDE
é quantas condenações um país já tem graças à lei, quantos processos
estão tramitando. No caso do Brasil, nem a lei nós temos. Estamos há
quilômetros de atraso. Já passamos situações desagradáveis na OCDE por
causa disso e em novembro passaremos de novo.
CC:
Uma comissão de juristas que auxiliou o Senado no debate sobre a
atualização do Código Penal propôs no ano passado a punição penal das
empresas corruptoras. Concorda?
JH:
Acho inadequado, não é da tradição do sistema jurídico brasileiro
aplicar a responsabilização penal a pessoas jurídicas, temos alguns
exemplos disso mas com pouco êxito na lei de crimes ambientais. O que
interessa é alcançar o patrimônio da empresa ou impedi-la de funcionar. A
legislação penal não é a mais adequada para isso. É perda de tempo.
CC:
Da sua posição de fiscal do Executivo, quem o senhor diria que é mais
responsável por tomar a iniciativa da corrupção: o corruptor ou o
corrompido?
JH: O lado da oferta, não tenho dúvida.
CC: E no entanto a sociedade não discute isso.
JH:
Sou ministro há vários anos e a única vez que fui ao Congresso discutir
o lado do corruptor foi quando participei [em outubro de 2011] de uma
audiência pública sobre esse projeto da responsabilização da pessoa
jurí
Há dez anos na Controladoria Geral da
União (CGU), primeiro como secretário-executivo e desde 2006 como chefe
do órgão fiscalizador do uso de recursos públicos federais, o baiano
Jorge Hage Sobrinho desenvolveu uma visão privilegiada do sistema
político brasileiro que lhe dá certeza: o poder econômico tem muita e má
influência.
"O peso quase absoluto das doações feitas por empresas para
campanhas, diz o ministro, deforma a democracia. Leva a classe política a
trabalhar para os financiadores, não para os eleitores, e com isso gera
o grosso da corrupção."
A crua avaliação ajuda a entender por que o Congresso resiste a votar uma reforma política que proíbe doações empresariais para campanhas e as substituiria por dinheiro reservado nos cofres públicos para uma espécie de investimento na democracia. Também explica por que esse mesmo Congresso faz corpo mole há três anos diante de uma lei que expõe a constrangimentos e punições aquelas empresas que forem pegas comprando funcionários públicos.
A aprovação de uma lei contra corruptores foi um compromisso assumido em 2000 pelo Brasil perante a Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 1997, a OCDE firmara uma convenção, ratificada por 39 países, que buscava conter a prática de suborno por parte de empresas. O alvo eram as multinacionais que pagavam propinas fora do país da matriz, mas o acordo estimulou a adoção de legislações com enfoque doméstico.
É o caso da proposta no Congresso brasileiro. Pelo projeto, uma empresa corruptora poderia ser punida pelo governo sem necessidade de julgamento na Justiça, com penas como multa com base no faturamento, expiação da culpa em praça pública via publicidade do nome do corruptor e veto à presença em licitações, por exemplo. “Essa lei permite atingir o patrimônio da empresa e recuperar o dinheiro para os cofres públicos, que é realmente o que faz diferença, o que realmente tem capacidade de inibir a corrupção”, diz Hage.
A seguir, a entrevista concedida pelo ministro a CartaCapital na terça-feira 9, Dia Internacional de Combate à Corrupção.
CartaCapital: Existe influência excessiva do poder econômico na política brasileira?
A crua avaliação ajuda a entender por que o Congresso resiste a votar uma reforma política que proíbe doações empresariais para campanhas e as substituiria por dinheiro reservado nos cofres públicos para uma espécie de investimento na democracia. Também explica por que esse mesmo Congresso faz corpo mole há três anos diante de uma lei que expõe a constrangimentos e punições aquelas empresas que forem pegas comprando funcionários públicos.
A aprovação de uma lei contra corruptores foi um compromisso assumido em 2000 pelo Brasil perante a Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 1997, a OCDE firmara uma convenção, ratificada por 39 países, que buscava conter a prática de suborno por parte de empresas. O alvo eram as multinacionais que pagavam propinas fora do país da matriz, mas o acordo estimulou a adoção de legislações com enfoque doméstico.
É o caso da proposta no Congresso brasileiro. Pelo projeto, uma empresa corruptora poderia ser punida pelo governo sem necessidade de julgamento na Justiça, com penas como multa com base no faturamento, expiação da culpa em praça pública via publicidade do nome do corruptor e veto à presença em licitações, por exemplo. “Essa lei permite atingir o patrimônio da empresa e recuperar o dinheiro para os cofres públicos, que é realmente o que faz diferença, o que realmente tem capacidade de inibir a corrupção”, diz Hage.
A seguir, a entrevista concedida pelo ministro a CartaCapital na terça-feira 9, Dia Internacional de Combate à Corrupção.
CartaCapital: Existe influência excessiva do poder econômico na política brasileira?
Jorge Hage: Não tenho nenhuma dúvida. E
será assim enquanto tivermos o financiamento empresarial das campanhas e
dos partidos. Não digo nem financiamento privado, porque se fosse um
financiamento privado amplamente pulverizado entre pessoas físicas,
ainda seria algo palatável, mais compatível com um sistema realmente
democrático. Mas como é um financiamento essencialmente empresarial, com
grandes doações de grandes grupos, a incompatibilidade com o sistema
democrático para mim é algo óbvio. Deixei a política eleitoral por isso.
Cheguei à conclusão de que é inviável [disputar eleições] para quem não
pretenda aderir a este financiamento. Desde que vim para a CGU
trabalhar no combate à corrupção, a cada dia me convenço mais de que o
financiamento empresarial está na raiz mais profunda da corrupção. Mas é
muito difícil a proposta do financiamento público lograr êxito.
CC: A corrupção é a principal conseqüência do financiamento privado?
CC: A corrupção é a principal conseqüência do financiamento privado?
JH: Não é apenas em corrupção que se
reverte a má influência do poder econômico, é também através do lobby.
Pode implicar muitas vezes uma influência direta de segmentos econômicos
nas decisões públicas. Talvez não seja justo rotular isso como
corrupção, mas na minha opinião é uma influência ilegítima. Veja um
exemplo nos Estados Unidos. Há uma dificuldade enorme de aprovar medidas
de desarmamento mesmo diante da matança por loucos que saem
metralhando. Boa parte da população pede o controle da venda de armas,
mas o governo não consegue aprovar devido ao lobby da indústria
armamentista.
CC: Quer dizer, mesmo que não haja irregularidade, o sistema está montado em cima de uma estrutura que não é a melhor do ponto de vista da democracia.
CC: Quer dizer, mesmo que não haja irregularidade, o sistema está montado em cima de uma estrutura que não é a melhor do ponto de vista da democracia.
JH: Com certeza. Até onde é possível
você chegar a ter sistemas democráticos isentos dessas influências é a
grande questão posta no mundo inteiro. É imperioso buscar caminhos de
reduzir as influências não democráticas, que não correspondem ao ideal
“um homem, um voto”. Temos de continuar nos esforçando para aprimorar o
sistema democrático.
CC: O senhor diria que a dimensão da corrupção ativa fica escanteada no debate público também por isso, porque nela está a digital dos financiadores de campanha?
CC: O senhor diria que a dimensão da corrupção ativa fica escanteada no debate público também por isso, porque nela está a digital dos financiadores de campanha?
JH: Sem dúvida. É muito difícil
aprimorar a legislação mas também é difícil aplicar mecanismos que já
existem. Aqui na CGU partimos de uma tradição e uma cultura que
dificilmente aplicavam punições. E as que eram aplicadas, voltavam-se
quase que exclusivamente para dentro do balcão, para o lado passivo.
Para punir o lado ativo, o lado da oferta da corrupção, nós começamos do
zero. E temos instrumentos muito parcos disponíveis na legislação, só a
declaração de inidoneidade de empresa corruptora, o que a impede de
participar de licitações, e a suspensão temporária dela. Outras penas,
como multas contratuais, são ridículas, não têm poder de inibir a
corrupção. Nós precisamos de uma lei de responsabilização civil e
administrativa dos corruptores. Ela vai permitir a punição do corruptor
baseada na responsabilidade objetiva da empresa, independentemente da
prova da culpa de um diretor, um preposto. Ela eliminaria por exemplo as
discussões que existiram no caso Delta [empreiteira alvo da CPI do
Cachoeira]: “Ah, foi um ato de um diretor regional, ele não estava
autorizado pela direção nacional”. A responsabilidade objetiva implica
responsabilizar a empresa independentemente de quem praticou o ato e se
houve dolo.
CC: Essa lei está parada no Congresso há três anos. A não votação dela é resultado da influência do poder econômico?
CC: Essa lei está parada no Congresso há três anos. A não votação dela é resultado da influência do poder econômico?
JH: Claro. Temos um relator [deputado
Carlos Zarattini, do PT de São Paulo] comprometido com o projeto, mas
ele encontra enormes resistências de determinados setores das bancadas,
não preciso nominar quais são. Já houve sucessivas negociações, cedemos
os anéis para não ceder os dedos, abrimos mão de inúmeros dispositivos
que considerávamos importantes porque é mais importante ainda o Brasil
ter essa lei. O Brasil vai ficar numa situação muito constrangedora
agora em novembro, que é o prazo da nova avaliação pela OCDE. O Brasil é
signatário de uma convenção da OCDE contra o suborno nacional e
transnacional e se comprometeu a adotar essa lei. A grande maioria dos
países já têm essas leis, e há muito tempo. Não estou falando só de EUA,
Inglaterra, França, países como Grécia, Itália e tantos outros também
têm. Hoje o que se discute na OCDE é quantas condenações um país já tem
graças à lei, quantos processos estão tramitando. No caso do Brasil, nem
a lei nós temos. Estamos há quilômetros de atraso. Já passamos
situações desagradáveis na OCDE por causa disso e em novembro passaremos
de novo.
CC: Uma comissão de juristas que auxiliou o Senado no debate sobre a atualização do Código Penal propôs no ano passado a punição penal das empresas corruptoras. Concorda?
CC: Uma comissão de juristas que auxiliou o Senado no debate sobre a atualização do Código Penal propôs no ano passado a punição penal das empresas corruptoras. Concorda?
JH: Acho inadequado, não é da tradição
do sistema jurídico brasileiro aplicar a responsabilização penal a
pessoas jurídicas, temos alguns exemplos disso mas com pouco êxito na
lei de crimes ambientais. O que interessa é alcançar o patrimônio da
empresa ou impedi-la de funcionar. A legislação penal não é a mais
adequada para isso. É perda de tempo.
CC: Da sua posição de fiscal do Executivo, quem o senhor diria que é mais responsável por tomar a iniciativa da corrupção: o corruptor ou o corrompido?
CC: Da sua posição de fiscal do Executivo, quem o senhor diria que é mais responsável por tomar a iniciativa da corrupção: o corruptor ou o corrompido?
JH: O lado da oferta, não tenho dúvida.
CC: E no entanto a sociedade não discute isso.
CC: E no entanto a sociedade não discute isso.
JH: Sou ministro há vários anos e a
única vez que fui ao Congresso discutir o lado do corruptor foi quando
participei [em outubro de 2011] de uma audiência pública sobre esse
projeto da responsabilização da pessoa jurídica.
Fonte: Carta Capital
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