Membros da força policial de elite, BOPE, em ação na favela da Maré na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
A ação policial criminosa no Complexo da Maré é resultado de uma lógica perversa.
Publicado originalmente no site Observatório de Favelas.
POR ELIANA SOUSA SILVA, diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5 – UFRJ
“Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em
comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”.
Rodrigo Pimentel
O comentário acima destacado é do consultor de segurança pública
Rodrigo Pimentel no telejornal RJ TV 1ª edição de 18/06. Ele foi feito
de forma natural, racional e equilibrada e é feito ao analisar a imagem
de um policial militar com uma metralhadora atirando para o alto, mas na
direção de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Ele ressalta o despreparo do
profissional da segurança pública, chamando a atenção para o fato de que
“o tiro, do mesmo jeito que vai para o alto, desce e pode atingir de
maneira letal qualquer pessoa.”
A observação do atual comentarista da área da segurança pública da
Rede Globo é extremamente pedagógico pois demonstra de forma cabal o
pensamento de parte significativa da nossa sociedade, com ênfase para os
governantes, sobre como as políticas públicas são idealizadas e
efetivadas a partir de uma visão hierarquizada da cidade e dos cidadãos.
No caso da reportagem, a afirmação de que a metralhadora não poderia
ser utilizada numa cena urbana de protestos, mas na favela ou em
situação de guerra, ilustra como o valor a vida na nossa cidade vai
depender do território ou das pessoas das quais estamos falando.
Afinal,
o que define a diferença fundamental para o uso do Fuzil, quando
estamos falando de cidadãos da mesma cidade – e, ressalte-se, no caso
das favelas, temos cidadãos que não têm garantido o direito elementar no
campo de segurança pública.
É triste precisar afirmar algo tão óbvio: que não se justifica em
passeatas ou nas favelas a utilização de armas pesadas, tampouco as
violências policiais características das últimas manifestações pelo país
a fora, e historicamente nas favelas.
Porém, indago, quando foi
diferente disso? Qual foi o momento da nossa história política em que
tivemos atitudes dos poderes estatais de respeito e reconhecimento do
direito da população se manifestar? Quando os mecanismos e meios
democráticos foram legitimados por quem governa em nosso país? Quando e
como somos estimulados no cotidiano a exercer o nosso direito de
participação?
Rodrigo Pimentel entrou aos 18 anos para a polícia militar do Rio de
Janeiro. Trabalhou como capitão do Batalhão de Operações Especiais,
BOPE, durante 5 anos e ganhou notoriedade pela participação no
documentário “Notícias de uma Guerra Particular” e outros filmes
vinculados à favela e aos grupos criminosos. Deixou a polícia para se
dedicar ao trabalho profissional de analista da segurança pública, o que
se tornou possível pela trajetória que teve como profissional desse
campo. E, em particular, pela crítica profunda, no citado documentário
de João Moreira Salles, à estratégia policial utilizada nas favelas
contra o tráfico de drogas.
O que estarrece e não pode deixar de ser pontuado quando ouvimos o
discurso do comentarista é o fato de serem as opiniões/análises desse
profissional consideradas um bom parâmetro para se entender o que
acontece na segurança pública do Rio de Janeiro. É a partir de visões
como a apresentada por Rodrigo Pimentel que se sedimentam juízos
perversos e estereotipados sobre as favelas e quem ali reside.
Quando realizei pesquisa de doutorado em 2009 no campo da segurança
pública, tive como motivação entender as práticas dos policiais
militares nas favelas, especificamente na Maré. As questões ali
propostas, e várias ainda me acompanham, se relacionam de maneira direta
com a fala do citado comentarista. O meu intuito e desejo como alguém
que cresceu e se socializou na favela era o de construir um quadro
interpretativo das práticas cotidianas presentes na Maré, em especial as
violentas, que permitisse ir além das representações hegemônicas no
mundo social carioca e brasileiro sobre a violência estabelecida nas
favelas do Rio de Janeiro.
Dessas, duas estão diretamente relacionadas com a fala de Pimentel:
“quais seriam as representações, valores, princípios e regras que têm
orientado as práticas dos profissionais da segurança pública, quando se
trata do trabalho junto às populações mais pobres da cidade do Rio de
Janeiro?” e “as experiências e representações dominantes nas
organizações do Estado, na mídia, na população em geral, estão centradas
na idéia de que a única possibilidade de enfrentamento dos grupos
criminosos passa, necessariamente, por uma opção sustentada em práticas
também violentas?”
OS armamento pesado usado pelos traficantes e bandidos, não ficam nada a dever para com os usados pelo BOPE. |
A fala aparentemente equilibrada daquele comentarista é simplesmente a
expressão de uma lógica perversa, violenta e irracional disseminada na
sociedade e nas forças do Estado, que enxergam a sociedade civil e as
populações das favelas como “problemas” a serem eliminados e não como
sujeitos de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados.
Fonte: DCM / Free ilustration by: militanciaviva!
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