Os negócios de Kica de Castro
“Deficiente, simples assim”, é como Kica de Castro me
orienta em relação a meu desajeitado e todo preocupado modo
politicamente correto de referir-me a seu casting de modelos. “Portador
de necessidades, assim como a palavra ‘especiais’, não são usados.
Existem grupos que ficam bem ofendidos com esses termos. Para evitar
qualquer problema: ‘pessoas com deficiência’ ou ‘pessoas com alguma
deficiência’”, esclarece.
Seu trabalho chama a atenção pela desenvoltura com que os
modelos revelam suas próteses, seus acessórios ortopédicos, suas
cadeiras de rodas. Tão delicadamente trabalhado que fica evidente serem
já parte integrante do fotografado. Não agridem, não chocam.
Kica é proprietária da única agência brasileira em que
todos os modelos têm algum tipo de deficiência. Começou fazendo fotos
científicas num centro de reabilitação do qual saiu para montar o
estúdio / agência. “Deixei um emprego fixo para batalhar num projeto que
ninguém acreditava e que hoje, além de ser reconhecido, tem valorizado a
beleza das pessoas com alguma deficiência.”
Ainda que continue fotografando eventos corporativos e
sociais, avalia que 70% de seu trabalho esteja voltado para a agência
com fotos para editoriais, seleção de casting para passarelas, palestras
e exposições. Hoje possui mais de 80 modelos cadastrados para trabalhos
que vão desde recepcionistas até campanhas publicitárias. “Às vezes é
preciso ficar atrás de algum balcão, onde o fundamental é apenas o
sorriso”, resume.
Kica reforça que os cachês são idênticos aos de modelos sem
deficiência, assim como as exigências também. “Quem trabalha com a
imagem precisa ter certos cuidados com vaidade, estar bem vestida,
maquiada, barba feita, cabelos e unhas bem cuidados.” Lembra ainda que
no mercado publicitário e de editoriais existe o nicho e a demanda por
modelos de mãos, de pés, de cabelos, que anulam a “deficiência”. A maior
dificuldade, contudo, diz respeito à acessibilidade. As edificações
ainda são um obstáculo e tanto.
Lembro que um obstáculo ainda maior é o preconceito, mas a
fotógrafa apresenta um pragmatismo desarmador: “Creio que os produtores
precisam olhar com mais naturalidade e objetividade. São aproximadamente
45 milhões de pessoas com alguma deficiência, uma verdadeira nação. A
publicidade pode e deve incluir pessoas com esse perfil, afinal, são
consumidores.”
Pergunto se alguma emissora de TV já demandou os serviços.
“A TV tem usado, sim. Atores cadeirantes já fizeram figuração em
novelas, programas de humor usam principalmente a questão do nanismo,
uns de maneira inteligente, outros são apelativos. Cabe a cada
profissional fazer a opção de aceitar ou não. Não vou julgar a escolha
de ninguém, afinal cada um sabe onde aperta o calo.”
Kica segue adiante em seu senso bastante prático com
relação à atividade comercial: “Alguns desses profissionais não são
agenciados, mas são atores, tem DRT e estão batalhando por
oportunidades. Nada contra atores representarem o papel de pessoas com
deficiência, afinal as artes cênicas permitem. Mas temos bons
profissionais que precisam apenas de oportunidade para provar talento.
Vale a pena ressaltar que estamos falando de mercado de trabalho. A
inclusão só acontece quando existe o empenho de ambas as partes: da
pessoa com deficiência preparada para atuar e do mercado conceder a
oportunidade de trabalho para esses profissionais. Tenho certeza de que
com a exposição na TV, de forma correta, sem assistencialismo, as
oportunidades para profissionais com deficiência vão aumentar a cada
dia. Porém, tudo tem que ser feito com naturalidade, deixando de lado a
questão ‘tadinho’ ou ‘super-herói’.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário