É preciso tirar as consequências da
entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Ricardo Balthazar, na Folha de
hoje: "os que desejam o impeachment não construíram até hoje uma
narrativa convincente."
Num país que não pode perder inteiramente a capacidade de separar
verdade de mentira, nem a justiça da fraude, uma afirmação como esta não
pode ser vista como um comentário passageiro. Não é um exercício de
diletantismo intelectual. Nem uma alegoria acadêmica. É um alarme que
anuncia uma tentativa de ataque a democracia.
Ex-presidente da Republica, principal referência do maior partido de
oposição, que patrocina as principais iniciativas contra o mandato de
Dilma Rousseff no Superior Tribunal Eleitoral e no Congresso, nem
Fernando Henrique Cardoso está convencido de que há elementos para se
propor o impeachment.
Essa avaliação comprova o caráter absurdo da cena ocorrida ontem na
Câmara de Deputados, quando, num passo de extrema gravidade, o
presidente Eduardo Cunha anunciou abertura das discussões sobre o ritual
que pode abrir os debates em torno do impeachment da presidente Dilma. É
preciso repetir as perguntas que cabem nessa hora: ritual? Por que?
Qual foi o crime? Qual é a "narrativa"?
O artigo 85 da Constituição enumera os crimes de responsabilidade que
podem dar base a uma ação contra a presidente. Dilma não pode ser
enquadrada em nenhum caso, admite FHC.
Para reforçar a dificuldade de quem quer afastar a presidente de
qualquer maneira, o parágrafo 4o. do artigo 86 diz que "o Presidente da
República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por
atos estranhos ao exercício de suas funções."
Essa ressalva exclui, de saída, qualquer tentativa de empregar as
operações contábeis conhecidas como pedaladas -- e que eram previstas
em contrato considerado regular pelo TCU -- como elemento para acusar a
presidente.
Esta é a questão. Em 1992, quando Fernando Collor foi afastado,
descobriu-se que o esquema clandestino do tesoureiro PC Farias ajudava a
pagar as contas da casa do Presidente. Essa foi a revelação trazida
pelo motorista Eriberto França, que prestava serviços a uma secretária
de Collor.
Eriberto não fez delação premiada. Nem prestou depoimento depois de
apodrecer na cadeia. Em declarações espontâneas e voluntárias, como quer
o bom Direito, o motorista contou à CPI o que fez e viu. Graças àquilo
que se chamava de "prova material", o processo contra Collor pode
seguir em frente, pois os indícios recolhidos a partir do motorista
demonstravam de forma irretorquível que o presidente recebia benefícios
pessoais de um esquema corrupto, articulado por seu tesoureiro. E isso
ocorria durante seu mandato presidencial.
O enriquecimento de PC era público e notório e fora demonstrado até
pela quebra do sigilo fiscal. O mesmo se pode dizer de integrantes
daquilo que se chamava República de Alagoas, que desfrutavam da
intimidade do governo e gabavam-se de sua influência na troca de
favores. O próprio irmão do presidente denunciou o que se passava. Não
adiantou.
Até ali, havia um problema real: provar que Collor, diretamente,
recebia benefícios enquanto era o presidente da República. Mesmo
admitindo que muitas pessoas que foram à rua queriam afastar o
presidente de qualquer maneira, com ou sem provas jurídicas, as
instituições apenas se moveram nessa direção quando não havia dúvidas do
envolvimento direto do presidente. Por isso o afastamento de Collor
contribuiu para fortalecer a democracia.
Antes da aparição de Eriberto, a grande pergunta dos democratas de um
país que enfrentava os descalabros do primeiro presidente escolhido em
urna após o golpe de 64 era saber como preservar as instituições --
quando as ruas se mexiam em outra direção.
Temia-se uma ação irresponsável, uma aventura sem uma "narrativa
convincente." Foi só depois da denúncia de Eriberto França que o
processo andou de verdade.
O próprio Fernando Henrique foi pedir ao jornalista Barbosa Lima
Sobrinho e ao advogado Marcelo Lavenére que preparassem a denúncia
contra Collor.
Ao contrário do que se poderia imaginar, os artigos 85 e 86 não se
destinam a proteger a presidente. Sua finalidade é defender a soberania
popular. Num país onde a Constituição, em seu artigo primeiro, diz que
"todos os poderes emanam do povo, que o exerce através de seus
representantes ou diretamente, na forma da lei".
E então: cadê a prova? E a narrativa?.
Nenhum comentário:
Postar um comentário