Eles revelaram algo que não só os EUA, mas todos os grandes poderes estão fazendo.
Publicado originalmente no Common Dreams.
O autor, o esloveno Slavoj Zizek, é filósofo e teórico crítico,
professor da European Graduate School e de insituições americanas como a
Universidade de Columbia, e Universidade de Michigan.
POR SLAVOJ ZIZEK
Todos nos lembramos do rosto sorridente do presidente Obama, cheio de
esperança e confiança, em sua primeira campanha: “Yes, we can!” — nós
podemos nos livrar do cinismo da era Bush e trazer justiça e bem-estar
para o povo americano. Agora que os EUA continuam suas operações
secretas e expandem sua rede de inteligência e espionagem até mesmo na
direção de seus aliados, podemos imaginar manifestantes gritando para
Obama: “Como você pode usar os drones para matar?Como você pode espiar
nossos aliados?” Obama murmura com um sorriso zombeteiro: “Yes, we can.”
Mas a personalização perde o sentido: a ameaça à liberdade revelada
pelos whistleblowers tem raízes mais profundas, sistêmicas. Edward
Snowden deve ser defendido não só por que seus atos envergonharam os
serviços secretos dos EUA; ele revelou algo que não só os EUA, mas
também todos os grandes (e não tão grandes) poderes – da China à Rússia,
da Alemanha a Israel – estão fazendo (na medida em que são
tecnologicamente capazes de fazê-lo) .
Seus atos forneceram uma base factual para as nossas suspeitas de que
estamos sendo monitorados e controlados – a lição é global, muito além
do padrão americano. Nós realmente não soubemos nada através de Snowden
(ou Manning ) que já não presumíssemos que fosse verdade. Mas uma coisa é
suspeitar de maneira geral, outra é obter dados concretos. É um pouco
como saber que um parceiro sexual está traindo você – pode-se aceitar o
conhecimento abstrato, mas a dor surge com os detalhes picantes, as
fotos do que eles estavam fazendo etc.
K. Marx |
Em 1843, o jovem Karl Marx afirmou que o ancien régime da Alemanha
“apenas imagina que acredita em si mesmo e exige que o mundo imagine a
mesma coisa”. Em tal situação, colocar a culpa em quem está no poder
torna-se uma arma. Ou, como Marx continua: “A pressão deve ser mais
premente adicionando-lhe a consciência da pressão, a vergonha deve ser
mais vergonhosa ao ser divulgada”.
Esta, exatamente, é a nossa situação hoje: estamos diante do cinismo
descarado dos representantes da ordem global existente, que só imaginam
que acreditam em suas idéias de democracia, direitos humanos etc.
Em seu texto clássico “O que é o Iluminismo”, Kant contrasta o uso
“público” e “privado” da razão — “privado” é , para Kant, a ordem
institucional em que vivemos (o nosso estado, nossa nação… ), enquanto o
“público” é a universalidade transnacional do exercício da razão: “O
uso público da razão deve ser sempre livre e só ele pode trazer
entendimento entre os homens; o uso privado da razão, por outro lado,
pode muitas vezes ser muito limitado, sem particularmente impedir o
progresso do entendimento. Por uso público da razão eu me refiro ao que
um acadêmico faz perante o público leitor.”
E. Kant |
Segundo Kant, o domínio do Estado é “privado” e contido por
interesses particulares, enquanto indivíduos que refletem sobre questões
gerais usam a razão de forma “pública”. Esta distinção kantiana é
especialmente pertinente com a internet e outras novas mídias. Em nossa
era da computação em nuvem, não precisamos mais de grandes computadores
individuais: softwares e informações são fornecidos sob demanda e os
usuários podem acessar as ferramentas ou aplicativos da web através de
browsers.
Este maravilhoso novo mundo, no entanto, é apenas um lado da
história. Usuários estão acessando programas e arquivos de software que
são mantidos longe de salas climatizadas com milhares de computadores.
Para gerenciar uma nuvem é preciso um sistema de monitoramento que
controla o seu funcionamento, e este sistema é, por definição, escondido
dos usuários. Quanto menor e mais personalizado o item (smartphone) que
eu tenho em mãos, e mais fácil de usar, mais sua configuração tem de
confiar no trabalho que está sendo feito em outro lugar, num vasto
circuito de máquinas que coordena a experiência do usuário. Quanto mais a
nossa experiência é espontânea e transparente, mais ela é regulada pela
rede invisível controlada por agências estatais e grandes empresas
privadas, que seguem suas agendas secretas.
Uma lei secreta, desconhecida dos indivíduos, legitima o despotismo
arbitrário daqueles que a exercem, como indicado no título de um recente
relatório sobre a China: “Mesmo o que é segredo é um segredo na China.”
Intelectuais incômodos que informam sobre a opressão política,
catástrofes ecológicas, a pobreza rural etc ficam anos na prisão por
trair um segredo de Estado. Como muitas das leis são confidenciais,
torna-se difícil para as pessoas saberem como e quando as estão
violando.
O que torna o controle de nossas vidas tão perigoso não é o fato de
que perdemos nossa privacidade e que todos os nossos segredos íntimos
são expostos ao Big Brother. Não existe agência estatal capaz de exercer
tal controle – não porque eles não saibam o suficiente, mas porque
sabem demais. A quantidade de dados é muito grande, e apesar de todos os
programas para a detecção de mensagens suspeitas, os computadores são
demasiado estúpidos para interpretar e avaliar corretamente, resultando
erros ridículos em que pessoas inocentes são listadas como potenciais
terroristas — e isso faz com que o controle estatal das comunicações
seja mais perigoso. Sem saber por quê, sem fazer nada ilegal, todos nós
podemos ser listados como potenciais terroristas.
Lembre-se da resposta lendária de um editor de um jornal do grupo
Hearst à dúvida do dono de por que ele não tirava longas e merecidas
férias: “Tenho medo de que se eu sair haverá caos e tudo vai desmoronar –
mas eu tenho ainda mais medo de descobrir que, se eu sair, as coisas
vão continuar normalmente sem mim, a prova de que eu não sou realmente
necessário!” Algo semelhante pode ser dito sobre o controle estatal das
nossas comunicações: devemos temer que não temos segredos, que as
agências estatais secretas sabem tudo, mas devemos temer ainda mais que
elas não consigam se sair bem nessa empreitada.
É por isso que os whistleblowers têm um papel crucial na manutenção
da “razão pública”. Assange, Manning, Snowden são os nossos novos
heróis, casos exemplares da nova ética que convém à nossa era de
controle digital. Eles não são mais apenas os denunciantes das práticas
ilegais de empresas privadas e autoridades públicas; eles denunciam
essas próprias autoridades públicas quando elas se engajam no “uso
privado da razão”.
Precisamos de Manning e Snowden na China, na Rússia, em todos os
lugares. Há estados muito mais opressivas do que os EUA – apenas imagine
o que teria acontecido a alguém como Manning em um tribunal russo ou
chinês (provavelmente sem direito a julgamento público). No entanto, não
se deve exagerar a suavidade dos EUA: é verdade, os EUA não tratam os
prisioneiros com tanta brutalidade como a China ou a Rússia – por causa
de sua prioridade tecnológica, os Estados Unidos simplesmente não
precisam da abordagem brutal. Nesse sentido, os EUA são ainda mais
perigosos do que a China na medida em que suas medidas de controle não
são percebidas, enquanto a brutalidade chinesa é exibida abertamente.
Portanto, não é suficiente jogar um Estado contra o outro (como
Snowden, que usou a Rússia contra os EUA): precisamos de uma nova rede
internacional para organizar a proteção dos denunciantes e a
disseminação de sua mensagem. Denunciantes são nossos heróis porque eles
provam que, se quem está no poder faz o que faz, nós também podemos
fazer.
Fonte: DCM
Free ilustration by: militanciaviva!
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