Alain Finkielkraut |
“Graças à anulação da topologia pela tecnologia, a experiência humana, por demais humana, da vizinhança, cede lugar à embriaguez olímpica de uma eqüidistância universal. O homem não é mais vernacular, ele é planetário.
Seu círculo imediato não é mais local, mas digital. Ele estava ligado a um território, agora está conectado à rede e doravante só tem que fazer autoctonias. A inerência ao mundo era seu destino, o espetáculo e o chamamento do mundo marcam sua acessão à liberdade. Cibernauta e orgulhoso de o ser, ele abandona a obscena materialidade das coisas pelas delícias infinitas de um espaço insubstancial.
Ele era geográfico e histórico, ei-lo angélico, livre, como os anjos, das fadigas de sua vida na terra e da ordem da encarnação, dotado, como eles, do dom da ubiqüidade e da imponderabilidade. Limitado que era por uma memória mais velha que ele e que o constrangia ao particularizá-lo, libertou-se do fardo do passado, dessa usurpação do dado, dessa alteridade íntima, desse ferimento prejudicial infligido ao sonho de autarcia e dessa presença em si dos mortos que se chama, sem dúvida por antífrase, identidade.
Fim da existência fechada: dado que a comunicação e a conexão generalizadas apagaram – miraculoso lifting – as rugas que as fronteiras haviam esculpido no rosto da humanidade, a pertença experimentada se apaga em proveito da relação escolhida: doravante todos os mortos estão disponíveis; “a felicidade se eu quiser, qualquer um pode dar qualquer prenome da terra a seu filho, se conectar, sem sair do quarto, a qualquer divertimento, ter acesso imediato às catástrofes, explorar avidamente as mais longínquas culturas, aparecer de repente em todos os lugares históricos, namorar, de chinelos, vitrines nos antípodas, e navegar à vontade nos bancos de dados da grande miscelânea mundial em que as tradições nos transformaram.
Outrora estava-se num ou noutro lugar, dentro ou fora, em seu próprio país ou no estrangeiro; era-se burguês ou boêmio, sedentário ou nômade. Este tende a desaparecer: o que quer dizer que a qualidade de turista, no homem, substitui pouco a pouco a do habitante e que se anuncia uma era em que, com a abolição simultânea das distâncias e dos destinos, todos poderão ser visitantes de tudo”.
Alain Finkielkraut, A humanidade perdida
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