por José Ribamar Bessa Freire
“Rio caminho que anda / e vai resmungando talvez uma dor.
Ah quanta pedra levaste / outra pedra deixaste sem vida e amor”.
Ah quanta pedra levaste / outra pedra deixaste sem vida e amor”.
Miltinho – Eu e o Rio
Excelentíssimo Sr. Governador do Estado do Amazonas
Dr. José Melo de Oliveira
Saudações! Escrevo essa carta, mas não repare os senões, para dizer o
que penso sobre o seu projeto de transportar água do rio Amazonas para o
semiárido nordestino, anunciado antes de sua posse num almoço com
jornalistas na Secretaria Estadual de Fazenda. Ali, na sobremesa, V. Exª
disse ter se inspirado no oleoduto da Sibéria para propor a construção,
“com dinheiro do Tesouro”, de um duto, cuja trajetória, nos cálculos
dos especialistas, vai da foz do Amazonas até Maceió, cruzando o sertão
de sete estados: MA, PI, CE, RN, PB, PE e AL (Ver mapa).
Na ocasião, em presença de todo o secretariado, V. Exª declarou que
vai apresentar o projeto no primeiro encontro com a presidente Dilma a
quem pretende convencer com argumento irrespondível publicado nos
jornais de Manaus (30/12):
– “A água do Rio Amazonas vai para o mar e não há nenhuma comprovação
científica de que a retirada da água doce faça alguma interferência na
natureza. Se eu fosse a Dilma, investiria na ideia. Vou levar essas
ideias para ela, vou colocar no ouvido dela essas minhas loucuras”.
Que loucura que nada, governador! Deixe de autocrítica exagerada. É isso mesmo! Surpreendente revelação: a água do rio vai para o mar. A cada segundo, o rio Amazonas joga fora no ralo do oceano Atlântico cerca de 300 mil metros cúbicos de água, o que representa um quinto de toda a água fluvial do planeta. Quanto desperdício! Para que tanta água, meu Deus? Ela vai se misturar com água salgada, o que é um estrago inútil, o melhor mesmo é compartilhá-la com quem precisa. Imagina se a natureza vai ficar preocupada com a retirada da água doce! Isso é frescura de ambientalista.
Aqueduto Melo Merenda
Sem querer puxar vosso excelentíssimo saco, senhor governador, acho
que a Dilma vai a-do-rar. Esse projeto genial, que pensa o futuro
amazônico vinculado ao Brasil, reflete o raciocínio simples de pessoa
humilde como V.Exª., que começou sua carreira como datilógrafo da
Universidade Federal do Amazonas, foi nomeado depois pelo governo
militar diretor da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI),
encarregado de identificar os subversivos daquela instituição e depois,
em 2005-2006, presidiu a Sociedade de Navegação Portos e Hidrovias do
Amazonas (SNPH). Isto lhe dá legitimidade em questões de flumenlogia.
Este projeto, uma jogada de mestre, lhe traz duas vitórias políticas.
De um lado, V. Exª que é do PROS (vixe, vixe) entra na seara do
Ministério de Minas e Energia, cujo novo titular é o senador cadeirudo
Eduardo Braga (PMDB, vixe, vixe), seu adversário derrotado nas últimas
eleições para governador do Amazonas. De outro lado, costura relações
com os governadores do nordeste. Se o projeto se concretiza, V. Exª
decola para outros voos que podem aterrizar quiçá no Palácio do
Planalto. Nunca um amazonense foi presidente da República. A hora se
avizinha.
Do ponto de vista econômico, as vantagens são muitas. Uma obra de tal
vulto vai gerar empregos e salvar empreiteiras desmoralizadas na
Operação Lava Jato que investiga lavagem de dinheiro na Petrobrás. O
desvio do curso do rio pode render tanto, mas tanto, que o desvio de
ovos da merenda escolar vai parecer coisa de criancinha. Além disso,
irrigará terras amigas da senadora Kátia Abreu, afilhada de casamento da
presidente Dilma, incentivará a produção de soja, fortalecerá o
agronegócio, aumentará as exportações, trazendo divisas para o país.
Do ponto de vista geopolítico, os benefícios são incontáveis. O
Amazonas, que hoje com seus 6.992,06 km é o segundo rio mais extenso do
mundo, se tiver seu curso ampliado atingirá mais de 10.000km, o que o
levará ao primeiro lugar no ranking, deixando o Nilo e o
Mississipi-Missouri lá atrás. Aí sim será um “rio de integração”,
podendo captar verbas do Ministério de Integração Nacional, comandado
por Gilberto Occhi (PP, vixe, vixe), cujo orçamento autorizado em 2014
foi de R$ 10,9 bilhões.
Por tudo isso sugiro que o novo curso do rio Amazonas pelo nordeste
se chame Aqueduto José Melo Merenda, codinome popular com que seu autor é
conhecido no Amazonas. Homenagem merecida.
Flumicídio
Longe de mim querer fazer intriga, mas V. Exª deve desconfiar do novo
ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo. Ele é bem capaz de se
apropriar do projeto, modificando-o e dando-lhe conteúdo nacionalista,
já que o rio Amazonas é visto pelos xenófobos como um “rio
impatriótico”, pois suas águas cavam e engolem terras no Brasil que são
carregadas pela corrente oceânica do Gulf Stream até a Flórida, nos
Estados Unidos. (Será por isso que a emergente burguesia de igarapé
compra imóveis em Miami, querendo ficar perto da terrinha surrupiada?).
O certo é que, com o aqueduto, a Amazônia deixará de ir de bubuia para Miami para seguir em direção ao Brasil profundo. No entanto, enquanto V. Exª quer ir para o Nordeste, advirto que Aldo Rebelo vai escolher São Paulo como destino final. É provável que quando tome conhecimento do projeto genial, com cujas premissas concorda, Aldo Rebelo convoque a equipe que já fez um novo traçado, ampliando a extensão do aqueduto.
No novo curso alternativo proposto, o rio corta o sul do Pará e o
Tocantins, dá uma desviada pela Bahia onde corre lentamente, que ninguém
é de ferro, desce desconfiado por Minas Gerais onde atravessa a fazenda
dos Neves, em Cláudio, para humilhar o aécioporto, e de lá vai
resmungando uma dor pelo Rio de Janeiro, bordeando a fronteira até São
Paulo.
A escolha que interessa Aldo Rebelo obedece a razões econômicas e
políticas. É que ele quer concorrer ao governo de São Paulo, em 2018, ou
como candidato a vice-presidente de Lula. Dessa forma, pretende isolar o
governador Alckmin (PSDB, vixe, vixe), que decretou o racionamento e
está multando quem não economizar água.
Senhor governador, seja qual for o trajeto do aqueduto, o Amazonas
está de parabéns por ter um gênio no seu comando. Não ligue para a
oposição que vai denunciá-lo como flumicida, assassino de rios. Eles não
sabem o que falam. Ao contrário de Vossa Excelência.
A morte dos rios
Dou-lhe, senhor governador, um conselho de graça para levar esse projeto até o final. Existem três livros que V.Exª NÃO pode ler sob hipótese alguma, porque contradizem a tese melo-merendista de que – segundo a ciência – a retirada de água doce não fere a natureza. A leitura deles deixa claro que secas como a de São Paulo ou do Nordeste foram produzidas pelo homem que mexeu com o sistema hídrico e alterou o balanço de entrada e saída de água. Sem programa inteligente de gerenciamento de bacias hidrográficas, a água vai pro brejo e com ela todos nós.
O primeiro livro a evitar é a Morte Social dos Rios – Conflito, Natureza e Cultura na Amazônia
escrito por Mauro Leonel, professor do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em integração da América Latina da USP. O autor mostra
como os diferentes segmentos sociais se apropriam dos rios, considerados
como importantes para a natureza da qual o homem faz parte. Estuda a
relação do poder com a malha fluvial desde o Brasil colônia até a
República, condenando sua exploração predatória.
O segundo livro que não deve ser lido é de autoria do historiador Victor Leonardi — Os historiadores e os rios
— com um estudo sobre o rio Jaú. Ex-professor das Universidades de
Brasília, Unicamp e Berkeley, ele relaciona meio ambiente, história
social e ambiental e analisa as mudanças ao longo do tempo. O autor
escreveu outro livro a ser também evitado – Entre árvores e esquecimentos: história social dos sertões do Brasil — no qual analisa o papel dos rios no interior do país.
O terceiro livro — Os senhores dos rios: Amazônia, margens e história — conta com vários autores e foi organizado por Mary del Priore, ex-professora da USP e da PUC/RJ e Flávio dos Santos, historiador, professor da UFRJ. Lá, os autores discutem conceitos e abordam a dinâmica de fronteira, a diversidade na Amazônia, a organização do trabalho, analisando as representações do europeu sobre a região.
Fuja desses livros, senhor governador, como o capiroto foge da cruz
sob o risco de sua leitura fazer V. Exª mudar de opinião. Eles estão
apoiados em dados empíricos, em documentos, em fatos. Se os tempos
fossem outros, os bons tempos em que funcionavam nas universidades as
AESIs, tais livros seriam certamente queimados por atentarem contra a
ordem vigente.
Excelentíssimo senhor governador, o nosso projeto — permita que use
aqui o possessivo — seja qual for o traçado, traz vantagem adicional:
vai levar para fora da Amazônia a pororoca, que derruba árvores de
grande porte e deixa insegura a população ribeirinha. Que a pororoca vá
estrondar em Maceió, em Santos ou no raio que o parta.
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