Quando lembramos que o fim da escravidão
– há 127 anos -, o advento da República, e a própria democracia não
significaram mudanças nas estruturas do status quo, tampouco
oportunidades iguais e justiça à população negra brasileira, ainda
há quem chame de exagero, critique tais afirmações e acuse o movimento
negro e quem defende políticas reparatórias de “vitimistas”.
Poucas vezes meios de comunicação da chamada “grande mídia”
brasileira abrem espaços para a demonstração de quão a sociedade está
muito mais próxima da escravidão do que de uma democracia real. Na noite
de segunda-feira 15, a Rede Record promoveu um desses momentos de
exceção, ao trazer à tona a gravíssima denúncia de opressão de meninas
negras quilombolas, tratadas, em pleno ano de 2015, como escravas
domésticas e sexuais, na região central do Brasil.
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Esse tema, sim, deveria chamar a atenção do Congresso Nacional e de
toda a sociedade brasileira, e não a falsa polêmica em torno da redução
da maioridade penal e da destruição do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) que, se fosse efetivado, protegeria a vida e a
dignidade da juventude.
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Jornalismo da Record revela escravidão doméstica e sexual de crianças negras e pobres
A reportagem revelou ao país a monstruosa realidade a qual crianças
negras e pobres da comunidade quilombola dos Kalunga, localizada no
território de 3 municípios do Estado de Goiás (Cavalcante, Monte Alegre
de Goiás e Teresina de Goiás), são submetidas há muitos anos.
Empregadas no trabalho doméstico, exploradas no trabalho infantil e
escravas sexuais dos patrões, homens brancos. Esta é a realidade vivida
por muitas crianças e, ao que parece, desde sempre, ao lado do poder
central do país.
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Meninas, de 9 a 14 anos de idade, exploradas de todas as formas por
aqueles que deveriam protegê-las. Famílias abandonadas e coagidas,
estruturas de Conselhos Tutelares e defensores de direitos humanos
completamente degradados e frágeis. Descaso de governantes. Uma
realidade ainda muito comum em especial nos rincões do nosso país,
onde permanecemos no século 19.
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“O velho coronelismo interiorano ainda rege nosso município”, diz uma das Conselheiras Tutelares da região. “Não temos formação, preparo e condições de intervir.”
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“A gente tem conhecimento de 57 denúncias, mas na verdade a
prática da exploração de crianças negras vem de tanto tempo e de uma
forma tão ‘normal’ para aquelas pessoas que o número de casos pode ser
muito maior”, diz em vídeo Marcelo Magalhães, editor da reportagem.
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Para o repórter Lúcio Sturm, a história de Dalila foi a mais forte: “Ela
foi escravizada numa casa, chegou a dormir numa casinha de
cachorro. Durante 18 anos ela aguentou essa dor de uma criança abusada,
explorada, sozinha em silêncio”, relata.
E as palavras da própria ‘Dalila': “Ela só pegou a coberta, jogou pra mim e disse: vai dormir lá na casinha com ele [cachorro]”
O apresentador do programa, Domingos Meirelles, em vídeo de bastidores reconhece: “Eu
tenho 50 anos de profissão e não me lembro, ao longo da minha vida
profissional, de ter visto uma história tão chocante quanto essa”.
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Um ódio, misturado a dúvidas e certezas me agonia o pensamento: como
é possível, num país que não alcançou o nível básico de proteção e
dignidade à vida de meninas, crianças de 8, 9, 11, 14 anos de idade,
discutirmos a destruição da maior legislação de proteção, o ECA? Que
espécie de país é esse que naturaliza, banaliza e estimula, por ações e
omissões, o estupro coletivo de suas crianças? E que moral têm os
senhores engravatados, alimentados por altos salários, corruptos,
hereges legislativos que em nome de Deus, da moral, da família, ou
mesmo, hipócritas, em nome da história da luta por direitos sociais,
“vermelhos-comunais”, que gestam a burocracia, arrotam status, se
engalfinham por holofotes e se justificam na burocracia do executivo,
dos ministérios, secretarias e conselhos, como o que eu participo, por
exemplo – o Conanda – ineficaz, moroso e vergonhoso que é. Que moral?
Talvez a moral do escárnio.
Isso é Brasil: O país do racismo explícito. O país da escravidão continuada.
Fonte: Carta Capital
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