As derrotas dos barões da mídia
Por Altamiro Borges, em seu blog
Em 2013, o debate sobre o poder ditatorial dos meios de comunicação e
sobre a urgência da regulação democrática da mídia ganhou impulso no
mundo inteiro. Até o Reino Unido, chocado com os escândalos de corrupção
e invasão de privacidade do império de Rupert Murdoch, aprovou uma dura
legislação.
A Rainha Elizabeth 2ª se tornou, na visão dos barões da
mídia, a nova “chavista” do planeta. Os avanços mais sensíveis se deram
na América Latina. Infelizmente, o Brasil se manteve na posição da
“vanguarda do atraso” no enfrentamento desta questão estratégica.
O “Royal Charter” britânico
A nova legislação britânica, assinada em outubro, cria um órgão
regulador para a mídia imprensa, estabelece um código de ética para os
veículos e fixa multas de até R$ 3,7 milhões para os crimes da imprensa.
Ela se soma à regulação já existente há décadas sobre as concessões
públicas de rádio e televisão. Os abusos da mídia britânica,
principalmente do império Murdoch – o maior do planeta – resultaram num
fato inédito. A nova lei foi elaborada pelo governo conservador de David
Cameron, obteve o apoio da oposição trabalhista e foi assinada pela
Rainha Elizabeth.
Os monopólios do setor fizeram de tudo para sabotar a nova lei.
Ingressaram na Justiça, pressionaram parlamentares e até atacaram a
“sagrada” monarquia britânica. A pressão, porém, não evitou que a rainha
ratificasse a “Royal Charter”, a carta real sobre a mídia imprensa. Os
poderes públicos se viram pressionados pela sociedade, que não engoliu
os crimes praticados pelo jornal “News of the Word”, do empresário
australiano Rupert Murdoch. O tabloide, que subornou e grampeou
telefones ilegalmente, inclusive foi fechado e seus diretores podem ir
para a cadeia.
Pela lei aprovada, o novo órgão regulador poderá aplicar multas de
até 1 milhão de libras (R$ 3,7 milhões), além de impor correções e
pedidos de desculpas por parte de jornais e revistas com o mesmo
destaque dado pelas matérias caluniosas. Ele será composto por
integrantes indicados de forma independente, sendo vedada a participação
de editores dos veículos privados. Já o código de ética exige “respeito
pela privacidade onde não houver suficiente justificativa de interesse
público”. Qualquer pessoa que alegar ter sido atingida por reportagens
poderá acionar o órgão.
A defesa do pluralismo na Europa
As derrotas dos barões da mídia não se deram apenas no Reino Unido.
Em vários países tão badalados como expressão da “democracia liberal”
também ocorreram importantes revezes em 2013. Outro destaque do ano,
simplesmente ocultado pela imprensa brasileira, foi a aprovação do
relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia
europeia”, em janeiro do ano passado. O documento foi elaborado por um
grupo de alto nível (HLG) constituído no âmbito da União Europeia e faz
trinta recomendações sobre a regulação democrática da mídia.
Entre outros pontos, o relatório realça que “o conceito de liberdade
de mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão,
mas não é idêntico a ela. A última está entronizada nos valores e
direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm direito à liberdade de
expressão… Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da
propriedade… Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso
dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo
a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder
dominante”.
Para o desespero dos barões da mídia, o documento propõe a introdução
da educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias; o
monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo
oficial; a total neutralidade de rede na internet; a provisão de fundos
estatais para o financiamento da mídia alternativa que seja inviável
comercialmente, mas essencial ao pluralismo; a existência de mecanismos
que garantam a identificação dos responsáveis por calúnias e a garantia
da resposta e da retratação de acusações indevidas.
“Todos os países da União Europeia deveriam ter conselho de mídia
independente, cujos membros tenham origem política e cultural
equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses
organismos teriam competência para investigar reclamações (…), mas
também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus
códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade… Os conselhos
de mídia devem ter poderes legais, tais como imposição de multas,
determinar a publicação de justificativas e cassação do status
jornalístico”, afirma o relatório.
Espionagem e atritos nos EUA
Se na Europa o debate sobre a regulação democrática da mídia produziu
alguma luz, na pretensa “pátria da democracia”, os EUA, ele só gerou
atritos e nada de concreto. Mesmo assim, o tema esteve na ordem do dia.
Durante vários meses, o presidente Barack Obama e os impérios midiáticos
se digladiaram. O governo acusou abertamente a rede Fox, do mesmo
Rupert Murdoch, de se transformar no braço político do Partido
Republicano e da sua corrente mais fascistoide, o Tea Party. Já os
veículos acusaram a Casa Branca de monitorar os seus repórteres e
promover retaliações.
Em junho passado, num fato inédito, as corporações midiáticas
chegaram a boicotar uma reunião com o secretário de Justiça, Eric
Holder. A crise decorreu das revelações de que o governo espionava
jornalistas. A agência de notícias Associated Press e a TV Fox News
tiveram telefonemas e e-mails de seus repórteres monitorados pelo
Departamento de Justiça, que investigava o vazamento de informações
consideradas confidenciais pelo governo. Diante do escândalo, que
desmistifica a “pátria da democracia”, Barack Obama aceitou conter as
medidas de monitoramento.
O armistício, porém, não soluciona os crescentes atritos entre o
governo dos EUA e as poderosas corporações midiáticas. Estudos indicam
que a concentração do setor tem aumentado no país, reforçando
assustadoramente o poder destes impérios. Mais de 120 jornais faliram
nos últimos anos e apenas os grandes sobrevivem à avassaladora crise da
mídia impressa. Já as emissoras de televisão “atravessam intensa
concentração nos EUA”, segundo reportagem de Nelson de Sá, publicada em
julho passado na Folha.
Através de aquisições e fusões, a mídia fica ainda mais monopolizada.
Nelson de Sá cita dois exemplos nos setores de TV a cabo e TV aberta.
“No primeiro, a Charter, controlada por John Malone, tenta comprar o
serviço da Time Warner. Negócios semelhantes estariam sendo discutidos
entre a Cablevisión e a Cox e, no âmbito das operadoras de TV por
satélite, entre a Dish e a DirecTV. No segundo setor, pequenos grupos de
emissoras abertas estão se consolidando em grupos maiores, como na
compra das 19 estações do Local TV pelo Tribune por US$ 2,7 bilhões”.
América Latina na vanguarda
Em 2013, a América Latina se manteve na vanguarda da luta pela
regulação da mídia. A região conhece bem os estragos causados por uma
mídia concentrada e manipuladora. Os golpes e ditaduras que
infelicitaram o continente foram bancados pelos veículos de impressa. O
neoliberalismo que dizimou a região também foi apoiado por este setor.
Já os governos progressistas nascidos da luta contra as chagas
neoliberais tiveram como principal opositor o “Partido da Imprensa
Golpista (PIG)”. Nada mais natural, portanto, que a regulação se
tornasse uma exigência democrática.
Ley de Medios da Argentina
A derrota mais sentida pelos barões da mídia no ano passado se deu na
Argentina. Em outubro, finalmente a Suprema Corte do país declarou a
constitucionalidade de quatro artigos da “Ley de Medios” que eram
contestados pelo Grupo Clarín, principal império midiático da nação
vizinha. Esta decisão histórica permitiu que o governo de Cristina
Kirchner prosseguisse com a aplicação integral da nova legislação,
considerada uma das mais avançadas do mundo no processo de
desconcentração e democratização dos meios de comunicação.
Pelas regras agora em vigor, os grupos monopolistas tem um prazo
definido para vender parte de seus ativos com o objetivo expresso de
“evitar a concentração da mídia”. O Grupo Clarín, maior holding
multimídia do país, terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200
outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde
estão as suas emissoras. A batalha pela constitucionalidade dos quatro
artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina. O Clarín – que
fez fortuna durante a ditadura militar – agora não tem mais como
apelar.
Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e sancionada por
Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei substitui o decreto-lei
da ditadura militar. Seu processo de elaboração envolveu vários setores
da sociedade – academia, sindicatos, movimentos sociais e empresários.
Após a primeira versão, ela recebeu mais de duzentas emendas
parlamentares. No processo de debate que agitou a Argentina, milhares de
pessoas saíram às ruas para exigir a sua aprovação. A passeata final em
Buenos Aires contou com mais de 50 mil participantes.
Mesmo assim, os barões da mídia tentaram sabotá-la, apostando suas
fichas na Suprema Corte da Argentina. Isto explica porque a sentença de
outubro abalou tanto os impérios midiáticos da região, reunidos na
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Num discurso terrorista,
eles afirmaram que a nova lei é autoritária. Mas até o Relator Especial
sobre Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU),
Frank La Rue, reconheceu que a Ley de Medios da Argentina – com seus 166
artigos – é uma das mais avançadas do planeta e visa garantir
exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não se confunde com a
liberdade dos monopólios midiáticos.
Equador e Uruguai dão exemplo
A Argentina não foi a única a avançar neste debate estratégico na
região. Outros dois países deram passos significativos neste sentido em
2013. Em junho, o parlamento do Equador aprovou o projeto do governo de
Rafael Correa que cria um órgão de regulação da mídia com poderes para
sancionar econômica e administrativamente os veículos da imprensa e que
definirá os critérios para as futuras concessões de rádio e televisão no
país. O projeto tramitou por quatro anos na Assembleia Nacional e foi
aprovado por folgada maioria – 108 a favor e 26 contra.
Além de criar a Superintendência de Informação e Comunicação, que
terá o papel de “vigilância, auditoria, intervenção e controle”, a lei
reserva 33% das futuras frequências de rádio e TV para a mídia estatal,
33% para emissoras privadas e 34% para os grupos indígenas e
comunitários. Ela também garante amplo direito de resposta,
contrapondo-se ao chamado “linchamento midiático”. Caso julgue que
pessoa física ou jurídica foi “caluniada e desacreditada” pela mídia, a
Superintendência pode obrigar o veículo responsável a divulgar um ou
mais pedidos de desculpas.
Para o deputado Mauro Andino, relator do projeto, a nova lei com seus
119 artigos representa significativo avanço na democracia no Equador e
na garantia da verdadeira liberdade de expressão. “Como cidadãos,
queremos a liberdade de expressão com os limites dados pela Constituição
e pelos instrumentos internacionais, além de uma liberdade de
informação com responsabilidade… Propusemos uma lei que se constrói a
partir de um enfoque de direitos para todos, não para um grupo de
privilegiados”. Vale lembrar que a mídia equatoriana é controlada por
banqueiros!
Para irritar ainda mais os barões da mídia do continente, em dezembro
último a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou a Lei dos Serviços de
Comunicação Audiovisual, proposta pelo governo de José Pepe Mujica. Com
183 artigos, a nova “Ley de Meios” encara os meios de comunicação como
um direito humano e define que “é dever do Estado assegurar o acesso
universal aos mesmos, contribuindo desta forma com liberdade de
informação, inclusão social, não-discriminação, promoção da diversidade
cultural, educação e entretenimento”.
Em seu enunciado, a nova lei enfatiza que os monopólios dos meios de
comunicação “conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e
a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação”.
Visando corrigir esta distorção, o texto propõe “plena transparência no
processo de concessão de autorizações e licenças para exerce a
titularidade” nas emissoras de rádio e televisão. Ela também prevê a
criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, com o intento de
“implementar, monitorar e fiscalizar o cumprimento das políticas”.
A nova lei uruguaia ainda estabelece cotas mínimas de produção
audiovisual nacional, institui o horário eleitoral gratuito nos canais e
determina que as empresas telefônicas não poderão explorar concessões
de rádio ou tevê. Ela também contempla a proteção à criança e ao
adolescente, já que regula a veiculação de imagens com “violência
excessiva”. Das 6h às 22h, esse tipo de conteúdo é proibido, com a
exceção para “programas informativos, quando se tratar de situação de
notório interesse público” e somente com aviso prévio explícito sobre a
exposição dos menores.
A reação da máfia midiática da SIP
As recentes mudanças legais na Argentina, Equador e Uruguai se somam
as que já estavam em vigor na Venezuela – o primeiro país da região a
encarar este tema estratégico –, Bolívia e Nicarágua. Não é para menos
que o rebelde continente latino-americano é hoje o maior entrave ao
poder dos monopólios da mídia. Em outubro passado, durante a 69ª
Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), os
poderosos empresários do setor confessaram que estão perdendo a batalha
de ideias na América Latina e decidiram reforçar sua postura
oposicionista.
Na maior caradura, o presidente da SIP, Jaime Mantilla, disse que “os
governos latino-americanos têm se dedicado a semear o ódio e o medo”
contra os meios de comunicação. O objetivo da entidade, sediada em
Miami, com famosos vínculos com a CIA e que sempre apoiou os golpes e as
ditaduras, é evitar que as novas legislações sejam aplicadas em sua
plenitude e que contagiem outros países da região. O Brasil inclusive
foi citado como preocupação maior dos mafiosos da mídia do continente.
Se depender da presidente Dilma Rousseff, porém, eles podem dormir
tranquilamente.
* Artigo publicado na revista Princípios número 129 – fevereiro e março de 2014.
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