Há coveiros dispostos a erigir mausoléus imponentes, adestrados a finalizar enterros de luxo. Terminam na cova rasa
Ricardo Stuckert/ Instituto Lula
Lula assumiu em 2002 atormentado pelas suspeitas do mercado, cuidou de aplacar as desconfianças e repetiu a receita dos anos 90
Desde a década de 80, depois da crise da dívida
externa, o Brasil perdeu-se nos descaminhos do baixo crescimento. No
início dos 90, os capitais privados, instigados pela recessão nos países
centrais, retornaram em massa à América Latina para saciar sua fome de
risco. Com muito apetite, fizeram a festa com empresas estatais
endividadas, ações desvalorizadas e diferenciais atraentes nas taxas de
juro.
O establishment
latino-americano não perde tempo. Dê mole e ele trata de enfiar as
economias da região num ciclo de endividamento em moeda forte. Essa
turma reage com a mesma sabedoria do cão de Pavlov: começa a salivar tão
logo se restabelecem os circuitos do crédito internacional e passam a
clamar pela “abertura econômica”. Como sempre acontece nos episódios de confidence building (sic), gênios da finança celebravam a nova era e decretavam: eureka!, a relação de valor entre o real e o dólar deve flutuar tão livremente quanto os termos de troca entre bananas e mexericas.
A persistente valorização do real acasalada com a abertura
comercial inepta, ao contrário do que proclamavam e ainda proclamam
seus preceptores, desfavoreceu a participação brasileira nas cadeias
produtivas globais. Foram catastróficos os efeitos dessa insânia nos
setores nos quais ocorriam com mais intensidade as transformações
estruturais e tecnológicas gestadas no movimento de expansão da grande
empresa transnacional. Nosso “afastamento” é flagrante nos setores de
maior dinamismo: infraestrutura de telecomunicações móveis, PCs,
computadores portáteis, tevês de plasma e LCDs, câmeras digitais,
componentes eletrônicos.
Lula assumiu a
Presidência em 2002 atormentado pelas suspeitas dos mercados, ainda
sensibilizados pela crise cambial de 1999 e incomodados pelo fracasso
rotundo do Plano Cavallo na Argentina. Diante desse quadro de ameaças e
instabilidade, no primeiro mandato, o ex-presidente cuidou de aplacar as
desconfianças e repetiu a receita dos anos 90. Manteve a taxa de juros
nas nuvens e o câmbio fora do lugar. A partir de 2003/2004, os
malefícios do câmbio valorizado acabaram dissimulados pelos resultados
favoráveis da balança comercial, sustentados pelos preços generosos das
commodities.
O agronegócio respondeu eficazmente à
mudança nos termos de troca entre commodities e manufaturados. A
ascensão econômica da China e dos asiáticos em geral, com dotações de
recursos naturais diferentes das nossas, mudou a configuração do
comércio internacional.
Nas condições acima descritas, seria não só desejável, mas
obrigatório buscar uma combinação câmbio-juro real mais estimulante
para avançar na diversificação da estrutura industrial, promover o
avanço das exportações nos segmentos de maior intensidade tecnológica e
estimular o investimento nos setores mais dinâmicos.
Há, é claro, quem defenda a tese de que
era inevitável submeter a indústria brasileira à saudável disciplina da
concorrência externa, resgatá-la dos perigosos confortos do
protecionismo e dos favorecimentos oficiais. Como toda ideia simples e
simplória com pretensão de tratar de assuntos complexos, tal “teoria”
revelou-se funesta. Essa gororoba produzida nas retortas dos
macroeconomistas de velório foi enfiada goela abaixo do País, a pretexto
de curá-lo de doença grave.
No caso da indústria
brasileira, os facultativos encarregados de tratar o paciente não só
terminaram por lhe passar o atestado de óbito como cuidaram de
enterrá-lo. É sabido que nesta nova era de flexibilidade e
empregabilidade, os profissionais devem estar preparados para dominar
muitos misteres. Só assim estarão aptos a escapar ilesos dos
imprevisíveis vagalhões da “destruição criadora”. E, não há dúvida, é
melhor enterrar do que ser enterrado.
Entre os macroeconomistas de velório e os
keynesianos de quermesse, o leitor há de escolher aqueles que lhe
parecem mais convenientes. Devemos conceder, preliminarmente, que
ninguém entende mais de sarcófagos do que o coveiro. Há, porém, coveiros
e coveiros. Uns são modestos, cavam em cemitérios simples, com enxadas
sem fio. Mas há os de ego impaciente, com pretensões de erigir mausoléus
imponentes. Diploma na parede, Ph.D. no estrangeiro, são ensinados e
amestrados a finalizar enterros de luxo. Terminam seus dias na cova
rasa.
Fonte: Carta Capital
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