Aliás, comecemos pelo mais atual dos temas, o Empréstimo 366. Acho que, no futuro, os historiadores paraenses irão se dedicar muito a compreender o “Empréstimo 366”. O empréstimo no valor de R$ 366 milhões que o Governo do Pará, na gestão Ana Júlia, fez ao BNDES. O 366 acabou se convertendo numa peça simbólica de alto teor político. Uma peça central na disputa eleitoral de 2010 e que, ainda hoje, tem desdobramentos, sempre servindo às representações políticas que o governo Jatene – ou seja, o PSDB+PMDB – fazem do cenário estadual.
O dia de ontem foi de efervescência, mentira e factoides. E de muita truculência. Minha leitura da situação é a seguinte:
1. Após ter seu programa de governo imensamente prejudicado pela crise econômica de 2008, com paralização e atraso de obras estruturantes que seriam suas “marcas de governo” – Ação Metrópole, Água para Todos, Navega Pará, Nova Santa Casa, Segurança Cidadã, reforma das escolas e outras – e que, possivelmente, garantiriam sua reeleição, Ana Júlia obteve, no BNDES esse empréstimo. Vários estados obtiveram empréstimos semelhantes, dentre os que tinham alta capacidade de endividamento, como era o caso do Pará. Tratava-se de uma espécie de compensação, do Governo Federal, pelos sacrifícios impostos a todos os governos estaduais durante o esforço para sair da crise. Esses sacrifícios foram duros. O Pará perdera muito dos repasses que receberia por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE), do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), do Fundo de Compensação pela Exportação de Produtos Industrializados (FPEX) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Perdera bem mais do que R$ 366 milhões. O mecanismo de compensação ativado pelo BNDES era a solução fundamental para retomar o programa de governo do PT no governo do Pará.
2. O problema foi que a oposição, liderada pelo PSDB e pelo PMDB, atrapalhou o quanto pode a tramitação do empréstimo. Dominando a mesa da Assembleia Legislativa e a maioria da Casa, retardou votações e devolveu, inúmeras vezes, o Projeto de Lei que autorizava o Governo a contraí-lo, demandando detalhamentos e formalismos com um zelo que, a bem da verdade, não costuma e nem costuma ter para com outros Projetos de Lei. Ao mesmo tempo a mídia conservadora paraense procurava semear um clima de crise social, construindo a versão de que o empréstimo seria usado para o financiamento da campanha da reeleição.
3. Não podendo mais retardar a aprovação do mesmo, sob pena de desgaste político, o PMDB e o PSDB aprovaram uma lei com teor exclusivamente político, que obrigava o Governo a aplicar os recursos de uma maneira que não era a proposta originariamente ao BNDES e, portanto, que não resultava nos investimentos previstos pelo Projeto de Governo. Cerca de metade do dinheiro seria repassada, simplesmente repassado, aos municípios do estado, pulverizando os recursos e evitando investimentos mais consequentes, que resultariam em visibilidade política. A outra metade também ficava condicionada elementos constritores que, ao menos para mim, sempre foram obscuros.
4. Uma das artimanhas usadas pelo PSDB e pelo PMDB para diminuir a capacidade do governo em usar os recursos, por exemplo, foi impor, na sua Lei, aplicação de parte substancial dos recursos em ODC (outras despesas correntes). Ora, recursos do BNDES não podem, simplesmente não podem, ser aplicados em ODC, somente em investimentos. A oposição então não sabia disso? Sabia, é claro que sabia, pois tanto o PMDB como o PSDB já governaram o estado. E, portanto, eles elaboraram conscientemente a cilada.
5. A batalha política travada foi dura. E foi vencida pela oposição. A demora e a pulverização dos recursos resultaram na derrota do projeto de reeleição. Com imensa coragem, ao que parece, a governadora decidiu aplicar os recursos da maneira como havia sido delineada junto ao BNDES e não como o PMDB e o PSDB impunham. Se digo ao que parece é porque é isso que se conclui com a leitura dos jornais de ontem. E se digo que a batalha foi vencida pela oposição é pelo fato de que o Programa de Governo foi apenas parcialmente realizado. O tempo ficou pequeno. O governo correu como pôde. As máquinas trabalhavam dia e noite em obras como o Ação Metrópole e a Nova Santa Casa, procurando avançá-las, mas já não havia tempo, e, para dizer a verdade, recursos, suficientes.
6. A lei geral da comunicação política é a seguinte: o êxito ou o fracasso de um governo resulta da sua capacidade em construir boas marcas de governo. Uma marca boa é uma marca que tenha fundamento, que não seja um discurso vazio. No governo Ana Júlia a ação de planejamento foi conturbada, sempre atrapalha por disputas internas que impediam a definição de marcas, a escolha de prioridades; mas, afinal, havia um conjunto impressionante de ótimas idéias, de programas estruturantes que, se efetivados em seu completo, teriam se convertido em excelentes marcas de governo.
7. A oposição sabia disso. Seu movimento foi consciente, frio, tático. Optou por privar o Pará de obras importantes, estruturantes, porque sabia que essas obras poderiam resultar em marcas de governo que levariam, possivelmente, à reeleição. É o tipo de política que o PMDB e o PSDB fazem no Pará. O objeto da política não é o Pará, o benefício da população, o futuro do estado. O objetivo é o jogo eleitoral.
8. As declarações do governador Jatene a respeito da sua dificuldade em prestar contas sobre o 366 atualizam essa mesma tática. Confundir a opinião pública. Sugerir corrupção onde o que houve foi investimento. Mascarar a verdade com meias-verdades. Querem um exemplo? O documento do BNDES enviado em junho de 2011 ao atual governo do Pará não afirma, em nenhum momento, que a prestação de contas está errada, tal como a Agência Pará, órgão de comunicação do Governo Estadual, juntamente com veículos de comunicação ligados ao PMDB e ao PSDB, publicaram. O BNDES não diz, portanto, que é irregular a prestação de contas feita pelo Governo Ana Júlia. Muito ao contrário disso, o que afirma é que essa prestação foi feita de acordo com normas e procedimentos do banco. O que não está de acordo é a Lei autorizativa imposta pelo PSDB e pelo PMDB. É essa Lei, infame, mesquinha e espúria que é irregular.
9. O governo anterior deve ser questionado e se explicar? Sim, é claro. Deve prestar contas, justificar-se, explicar detalhadamente como usou o dinheiro do 366. E deve fazê-lo com toda dignidade. Fazê-lo com dignidade significa prosseguir na sua disputa política. Isso significa esmiuçar a verdade, produzir análises mais aprofundadas e resgatar seus compromissos de raiz.
10. E por falar em raiz... Alguma palavra sobre isso. Os compromissos do PT são nobres. Os projetos eleitorais os prejudicam? Sim, muito, porque é da realidade do sistema político brasileiro o amesquinhamento da política e fica muito difícil jogar se não for com as armas que a direita sempre usou. Mas, enquanto a reforma política não vem, é preciso saber resgatar os compromissos de fundação. PSDB e PMDB – e toda a direita, enfim – sempre farão o jogo da confusão. Por que? Porque sua causa é desumana, é anti-social, é retrógrada. Eles precisam mascarar essa causa, esse objetivo, essa visão de mundo. Precisam recorrer eternamente a subterfúgios e a jogos de manipulação para se sustentar no poder. O PT, bem como outros partidos que ocupam um espectro político mais à esquerda, ao contrário, possuem uma causa justa, humana, democrática, social. Precisam não se deixar acorrentar a esse mesmo jogo. Precisam gerar argumentos e fazer o debate público procurando a clareza, a razão. Isso é possível, nem que seja por uma única razão, a causa da esquerda é boa.
Blog Hupmnemata
Nenhum comentário:
Postar um comentário