A obra Para Uma Ontologia do Ser Social,
do filósofo húngaro György Lukács, um dos maiores empreendimentos
intelectuais do século 20 nos estudos marxistas, é publicada pela
primeira vez no Brasil.
A obra é dividida em dois
volumes, com excelente tradução de especialistas como Carlos Nelson
Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider, revisão técnica de Ronaldo
Vielmi Fortes, Ester Vaisman, Elcemir Paço Cunha e apresentação do
professor José Paulo Netto, que também concedeu uma esclarecedora
entrevista ao Estado. A previsão de lançamento do segundo volume é em
meados de 2013.
Leia a seguir, na íntegra, a
entrevista exclusiva concedida pelo professor José Paulo Netto,
comentando a publicação dessa obra, considerada pela crítica
especializada uma das mais importantes de Lukács e da teoria marxista do
século 20.
Na apresentação do livro Para Uma Ontologia do Ser Social (1968),
o senhor menciona esta obra como fruto de um movimento no qual Lukács
tenta um “renascimento do marxismo”. Em que sentido se deu esse
renascimento?
Depois de 1956, Lukács (que,
como se sabe, foi um protagonista importante do processo que culminou na
insurreição húngara daquele ano, dirigida contra o stalinismo vigente
também na Hungria) teve condições de explicitar as suas críticas ao que
esquematicamente se pode designar como a “era stalinista”.
No plano do desenvolvimento do marxismo, o filósofo sustentou que a nota dominante do regime stalinista foi a dogmatização, a sectarização – em suma, o que chamou de “paralisia teórica” do pensamento que se reclamava de Marx. Para ele, a superação efetiva da pesada herança do período de Stalin implicava um esforço teórico não só para recuperar o que julgava ser o autêntico espírito do pensamento marxiano, asfixiado a partir dos anos 1930, mas sobretudo para, a partir desta recuperação, analisar e compreender a realidade do capitalismo contemporâneo (e também a própria problemática do socialismo existente).
Precisamente esse esforço – que,
segundo Lukács, deveria envolver a renovação da pesquisa
econômico-política, filosófica e cultural – resultaria no que ele
concebia como um “renascimento do marxismo”, que considerava urgente e
necessário se os marxistas quisessem dialogar com o tempo presente e
intervir adequadamente nas transformações em curso à época. E, de fato,
parece inconteste que os anos 1960 assistiram à emergência de tendências
neste sentido, tanto nos países do Leste europeu quanto no Ocidente,
num processo que foi bastante problematizado, a partir dos anos 1980,
com as derrotas do movimento socialista em escala mundial.
Lukács projetou a sua Ontologia de modo articulado à sua Estética e à sua Ética. Como ocorre essa articulação em seu pensamento?
Lembremos que a Estética (mais
exatamente, a sua primeira parte, concluída em 1960) publicou-se em 1963
e a Ética nunca foi redigida. Lukács concebeu originalmente a Ontologia
para ser tão somente a “introdução” à Ética.
Contudo, a impostação ontológica do marxismo de Lukács emerge já nos anos 1930 e, desde então, percorre toda a sua obra, embora só tenha a sua centralidade afirmada abertamente e exponenciada na década de 1960 (inclusive por razões políticas – não se esqueça que, para Lukács, o stalinismo expressa uma “invasão” neopositivista no marxismo e sabe-se do caráter anti-ontológico do pensamento neopositivista). É apenas no segundo terço dos anos 1960 que Lukács evidencia claramente a urgência da tematização da ontologia – e o faz porque, sem uma teoria do ser social (exatamente uma ontologia do ser social), não haveria como fundar, de modo materialista e dialético, uma ética. Compreende-se, pois, por que ele pensou aquela como “introdução” a esta.
As bases da Estética configuram
nitidamente uma concepção ontológica do marxismo, ainda que esta não
seja explicitada como tal. Por isto, não há nenhuma relação excludente
(ou mesmo colidente) ou, ainda, externa entre a Estética e a elaboração
dos últimos anos de Lukács, salvo no plano terminológico. Antes, o que
de fato se verifica é uma articulação íntima e medular entre a Estética e
a Ontologia: nesta, os pressupostos daquela são expostos e tratados
enquanto fundantes de toda a reflexão marxiana (não por acidente, Lukács
enfatiza os “princípios ontológicos fundamentais” de Marx).
Qual seria então, para Lukács, a consequência política mais evidente dessa “invasão neopositivista no marxismo”?
Uma das características que,
conforme Lukács, marcam o marxismo próprio à era stalinista foi a sua
conversão numa ideologia rasteiramente pragmática e taticista; para
Lukács, esta verdadeira perversão se vinculou estreitamente à matriz
neopositivista – não se trata, aqui, de eventuais influxos das
formulações dos pensadores neopositivistas, mas da incorporação de um
quadro teórico-conceitual, socialmente determinado, cujo viés
epistemologista e anti-ontológico se adapta à legitimação de uma práxis
essencialmente instrumental. No plano imediatamente político, isto se
traduziu numa concepção administrativa do processo social, derivando no
burocratismo e no comportamento manipulador próprio das instâncias
político-partidárias do regime stalinista.
Em
que sentido a renovação do marxismo proposta na abordagem ontológica de
Lukács se distingue de sua contribuição inovadora em uma de suas obras
de juventude e uma das obras mais influentes do marxismo,História e Consciência de Classe, de 1923?
Não há dúvida de que a obra do “jovem” Lukács – e me refiro à obra de Lukács anterior à sua adesão ao comunismo (1918) – é importante e valiosa, como, aliás, Max Weber corretamente avaliou. E também não há dúvida de que História e Consciência de Classe, seu primeiro livro marxista de enorme relevância (embora não se deva esquecer Tática e Ética, de 1919), marca uma óbvia ruptura com o que ele produziu até 1918. Mas o marxismo revolucionário de História e Consciência de Classe é – inclusive na ulterior apreciação do próprio Lukács – elaborado a partir de uma concepção não ontológica (mais exatamente: anti-ontológica) da obra de Marx. Neste sentido, o “último” Lukács, o da Estética e da Ontologia, opera num quadro de referência essencialmente distinto daquele do “jovem” Lukács e, igualmente, do Lukács de História e Consciência de Classe. Apenas para indicar um ponto nevrálgico: no genial livro de 1923, a categoria trabalho, fundante do pensamento do “último” Lukács (e não só), é residual; as implicações teórico-filosóficas deste giro são decisivas para as concepções de sociabilidade, de história e de cultura.
Penso, todavia, que se deve ter o
cuidado para não absolutizar a noção de “ruptura” no pensamento de
Lukács. Uma análise rigorosa da sua obra revela, para além de pontos de
ruptura (a maior, indiscutivelmente, foi a decorrente da sua adesão ao
comunismo e ao marxismo), continuidades profundas. Não me parece casual,
por exemplo, que o “último” Lukács retome, é óbvio que noutro registro,
exatamente as suas temáticas juvenis – a estética e a ética.
Nesse sentido, poderíamos dizer que a preocupação ontológica demarca a passagem do jovem Lukács a um Lukács maduro?
Concordo com esta afirmação, se
ela expressa a ideia de que, com a impostação ontológica, Lukács supera o
seu marxismo dos anos que vão de 1918 a 1923 e desde que façamos duas
observações. Primeira: essa passagem, verificável na abertura dos anos
1930, é um processo, que pode ser rastreado na segunda metade da década
anterior (o giro que se concretizará entre 1930-1932 é detectável já a
partir do ensaio Moses Hess e o Problema da Dialética Idealista,
de 1926); segunda: o Lukács posterior a 1930 não evolui e avança de
modo unilinear; entre os anos 1930 e o fim dos anos 1950, registram-se
momentos diferenciados na sua obra. Com efeito, se há um fio vermelho
que unifica o conjunto da produção lukacsiana posterior a 1918, esta
unidade não elude estágios distintos na sua evolução.
O
senhor menciona que a reflexão de Lukács sobre a ontologia começa a se
desenvolver na década de 1930, embora de modo mais crítico-negativo do
que propositivo. Quais os fatores dessa guinada da importância da
ontologia no pensamento de Lukács?
De fato, penso que devemos localizar o giro do pensamento de Lukács na direção da ontologia na entrada dos anos 1930, quando ele teve a oportunidade de conhecer, em Moscou, os até então inéditos manuscritos marxianos de 1844 e, em seguida, de prosseguir numa nova leitura de Lenin.
A meu juízo, estimularam de imediato este giro dois fatos (intimamente relacionados): a reação negativa do comunismo oficial à História e Consciência de Classe e,
em 1929, a derrota política que Lukács experimentou no interior do
partido comunista húngaro – ambas tinham resultado numa autocrítica
“insincera”. A necessidade de compreender os verdadeiros equívocos
teóricos de 1923 (não os apontados pelos seus críticos comunistas, que
ele tentou replicar num texto que ficou inédito até 1996, Reboquismo e Dialética)
e o fracasso político de 1929 é que o conduziram à inflexão no sentido
da ontologia. Como se vê, fatores imediatos tanto teóricos como
políticos. No plano teórico, a primeira grande implicação deste giro
comparece em O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista (concluído
em 1938 e publicado em 1948); no plano político, a implicação foi
permanecer no interior do movimento comunista a qualquer preço para
combater o fascismo, suportando o stalinismo para, no seu interior,
travar a resistência possível, com os limites que afetaram a sua obra.
No “último” Lukács, o que
explica a centralidade da ontologia é o duplo movimento que, segundo o
filósofo, determinaria o “renascimento do marxismo”: ela seria o
requisito para, de uma parte, operar a crítica substantiva às
deformações do pensamento de Marx que foram conaturais à era stalinista
e, de outra, para a sua renovação em face das novas exigências postas
pela dinâmica sócio-histórica do século 20.
Em
geral se associa Lukács a outros importantes nomes da renovação da
teoria marxista: Ernst Bloch e Karl Korsch. Quais outros nomes
diretamente ligados ao pensamento de Lukács o senhor destacaria?
A associação a que você se refere tem razão de ser. A década de 1920 foi, a meu juízo, das mais fecundas no desenvolvimento do marxismo – e esta fecundidade está relacionada à dinâmica dos processos revolucionários europeus, desatada pela crise aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução de Outubro.
A amizade que uniu Lukács a
Bloch foi, do ponto de vista existencial, absolutamente importante. Mas
se ambos também tinham uma visão política da conjuntura muito semelhante
(eram “messiânicos”, como o disse Lukács) e partiam teoricamente do
reconhecimento da importância de Hegel para o marxismo, parece-me que
suas concepções filosóficas nunca foram inteiramente compatíveis.
Diferente foi a relação com Korsch (muito menos significativa no plano
pessoal): até cerca de 1925 – e isto se comprova com a leitura de
Marxismo e Filosofia, que sai no mesmo ano que História e Consciência de
Classe –, havia muito de comum entre eles (em especial a postura
antipositivista).
Ademais de Lenin, o pensamento
de Lukács, à época, também se nutriu de inspirações provindas da obra (e
da ação) de Rosa Luxemburgo, a quem o filósofo húngaro sempre admirou.
Mas não se deve esquecer que,
aderindo ao marxismo, Lukács não fez (e felizmente!) tabula rasa da sua
formação pré-marxista, na qual Simmel teve participação. Parece-me,
todavia, que foi extremamente importante a relação (não só intelectual,
mas de amizade) que Lukács manteve com Max Weber – a influência de
Weber, indiscutivelmente, foi muito forte sobre o filósofo.
Quais as principais convergências e divergências entre dois dos maiores expoentes do marxismo no século 20, Lukács e Gramsci?
Ao que sei, Lukács conheceu o
trabalho de Gramsci muito tardiamente – com certeza, a partir de finais
dos anos 1950. Mas, numa oportunidade, chegou a dizer que o marxismo que
se renovava nos anos 1920 tivera em Gramsci, Korsch e nele mesmo os
seus principais expoentes.
Meu amigo Carlos Nelson
Coutinho, recentemente falecido, sem desconhecer as profundas diferenças
entre Lukács e Gramsci, sempre insistiu na compatibilidade teórica
entre ambos – caracterizava como falsa a fórmula excludente “Lukács ou
Gramsci”, sublinhando a alternativa “Lukács e Gramsci” para o
“renascimento do marxismo”.
Claro que há elementos
convergentes entre os dois pensadores: a valorização das instâncias da
cultura e do diálogo crítico com a herança cultural do passado, a
crítica radical da ordem burguesa, o protagonismo dos trabalhadores no
processo revolucionário, a indispensabilidade do partido na condução
deste processo... Afinal, ambos foram marxistas e revolucionários.
Entretanto, o que me parece
distingui-los é a sua concepção filosófica do marxismo e, decisivamente,
a fundamentação ontológico-materialista que dela oferece Lukács. Do
ponto de vista estritamente filosófico – e sei que esta afirmação é
polêmica –, o pensamento de Gramsci apresenta insuficiências e elas têm
implicações sobre o conjunto de sua obra.
Segundo
Lukács, “a política é o meio, a cultura é o fim”. Nesse sentido, mesmo
partindo de uma estreita relação entre cultura e política, haveria uma
distinção metodológica essencial entre ambos?
Você recordou aquele que me parece ser o mote de toda a obra de Lukács, o “núcleo problemático original” (a expressão é de Mészáros) que sempre vertebrou o pensamento do filósofo húngaro. E estou convencido de que os vários e diferentes registros teóricos em que Lukács tematizou esta questão central – de 1908 (A Evolução do Drama Moderno) às suas últimas intervenções – tiveram, todos eles, por base uma convicção que permaneceu inabalável: a hostilidade da ordem do capital às objetivações anímicas humanistas (em especial, mas não exclusivamente, às da chamada alta cultura).
E, na própria formulação, fica
evidenciado o diferente estatuto que Lukács atribuiu à cultura e à
política. Sem ter da política uma concepção meramente instrumentalista,
Lukács jamais conferiu a ela o significado que adjudicou à cultura. Para
dizer de maneira breve: a política é tão somente um conjunto de meios e
atividades através dos quais, nas sociedades que ainda não
transcenderam a exploração, a alienação e as múltiplas formas de
opressão, os homens travam as lutas emancipatórias que podem abrir a via
ao “reino da liberdade”. Neste, que nunca imaginou ser um paraíso
terrestre livre de tensões e conflitos, o pensador húngaro visualizava a
possibilidade de novas modalidades de desenvolvimento cultural pleno.
Qual a maior atualidade de Lukács?
Referi-me há pouco às derrotas
do movimento socialista no período pós-1980 e ao fato de elas terem
problematizado o “renascimento do marxismo” por que o Lukács se
empenhou. Nos últimos 20 anos do século 20, a ambiência cultural (para
não falar já da política) mostrou-se francamente adversa ao socialismo e
ao marxismo – provam-no a vigência das teses sobre o “fim da história” e
as teorias pós-modernas. Foram anos em que o pensamento de Lukács
experimentou o que, noutra oportunidade, chamei de seu “terceiro
exílio”.
Todas as indicações mais
recentes sugerem que esta conjuntura cultural (a dos “tempos
conservadores”, como a designou o injustamente esquecido Agustín Cueva)
está a esgotar-se. A crise sistêmica que vem corroendo a ordem do
capital já não pode ser minimizada e, menos ainda, ocultada. Uma das
suas implicações, provavelmente a médio prazo, será – se a barbárie
presente não nos destruir e para conjurá-la – a ativação do pensamento e
da ação socialista e, no interior do seu diferenciado campo, do
marxismo. Para uma tal ativação, o contributo de Lukács (e,
particularmente, da sua Ontologia) será indispensável.
A minha hipótese de trabalho é
que somente um marxismo liberado de todo o ranço remanescente da era
stalinista, aberto ao debate e plural – mas com fronteiras claras e
suscetíveis de polêmica e dissenso –, somente um tal marxismo terá
viabilidade. A obra de Lukács será constitutiva desse marxismo. Por
isto, mais que atual, ela é prospectiva.
FONTE: O Estado de São Paulo
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