Ninguém poderia prever que, no novo século, práticas crueis e aberrações jurídicas ainda fossem existir
Nós nunca poderíamos prever que a história do novo século englobaria a
destruição e a distorção de fundamentos jurídicos e políticos
anglo-americanos fundamentais, em vigor desde o século 17.
O Habeas Corpus para os marginalizados foi abandonado nos EUA e no
Reino Unido, tribunais secretos foram criados para ouvir provas
secretas, a culpa tem sido inferida por associação, tortura e
interpretação abertamente justificadas e convenções internacionais
vitais, consolidadas no rescaldo da Segunda Guerra Mundial (a Convenção
de Genebra, a Convenção dos Refugiados, a Convenção Contra a Tortura),
têm sido deliberadamente ignoradas.
É uma ironia amarga que John Lilburne, o organizador mais importante
dos nossos direitos na Inglaterra e nos EUA, sobre cuja história foram
escritas as constituições desses países, alcançou esse feito em grande
parte por ter sido submetido à tortura e a acusações baseadas em provas
secretas, algemado e mantido em condições extremas de isolamento,
exposto à humilhação pública e condenado.
Os piores excessos dos últimos dez anos deveriam ter acionado alarmes. No mínimo porque há, nesse paralelo histórico, uma chave para entender o que esta acontecendo hoje.
Lilburne, um intratável jovem puritano, com um forte senso de seus
direitos de inglês nascido livre e com um pouco de conhecimento da lei,
em 1637, foi convocado para o Tribunal da Câmara da época, o chamado
Star Chamber – composto por nada mais do que uma pequena comissão, sem
um júri, com poderes para investigar. Lilburne estivera recentemente na
Holanda e fora acusado, com base em denúncias de um informante anônimo,
do envio do que foi vagamente definido como “fátuos e escandalosos”
livros religiosos para a Inglaterra. Sua defesa foi direta: “Eu sou
honesto e não enviei nada.”
Depois disso, ele se recusou a responder às perguntas baseadas em acusações anônimas, como sua associação com outros suspeitos de envolvimento no envio dos livros: “Eu acho que posso encarar uma defesa justa e peço que meus acusadores fiquem face a face comigo, para justificar do que eles me acusam”. Por sua recusa em “colaborar”, foi multado em 500 libras, uma fortuna para ele, amarrado a uma carroça e chicoteado pelas ruas de Londres.
Depois disso, ele se recusou a responder às perguntas baseadas em acusações anônimas, como sua associação com outros suspeitos de envolvimento no envio dos livros: “Eu acho que posso encarar uma defesa justa e peço que meus acusadores fiquem face a face comigo, para justificar do que eles me acusam”. Por sua recusa em “colaborar”, foi multado em 500 libras, uma fortuna para ele, amarrado a uma carroça e chicoteado pelas ruas de Londres.
Lilburne foi colocado em um pelourinho em uma postura insuportável
(na terminologia de hoje, “posição de estresse”), mas ainda exortou
todos que o quisessem ouvir a resistir à tirania dos bispos, repetindo
textos bíblicos para a multidão que faziam alusão às injustiças
cometidas contra ele.
Ao ser obrigado a depor contra si: “Ninguém deve ser obrigado a ser seu próprio carrasco”. Ele sobreviveu a dois anos e meio na prisão de Fleet, amordaçado e mantido numa solitária, algemado e famélico. O primeiro ato do Parlamento Long, em novembro de 1642, foi no sentido de libertá-lo, abolir o Tribunal e firmar a resolução de que sua sentença foi “ilegal e contra a liberdade individual, e também sangrenta, cruel, perversa, bárbara e tirânica”.
Ao ser obrigado a depor contra si: “Ninguém deve ser obrigado a ser seu próprio carrasco”. Ele sobreviveu a dois anos e meio na prisão de Fleet, amordaçado e mantido numa solitária, algemado e famélico. O primeiro ato do Parlamento Long, em novembro de 1642, foi no sentido de libertá-lo, abolir o Tribunal e firmar a resolução de que sua sentença foi “ilegal e contra a liberdade individual, e também sangrenta, cruel, perversa, bárbara e tirânica”.
A posição pública de Lilburne e o extraordinário movimento político
do qual ele fez parte, os Levellers, produziram muito mais do que uma
breve reação de repúdio ao uso da tortura e da prisão arbitrária. Até o
final do século 17, isso havia cristalizado a base dos conceitos da
nossa sociedade (e que estamos constantemente a optar por esquecer ou
ignorar) – o mais importante, o conceito de direitos inalienáveis da
pessoa e não do estado. Os Levellers insistiram que os direitos
inalienáveis pertenciam ao povo e não foram conferidos pelo Parlamento,
mas por Deus, sem a participação do Estado – portanto, sua violação
jamais poderia ser justificada. Os Levellers formularam uma constituição
escrita, nunca adotada na Inglaterra. No Novo Mundo, porém, ela
tornou-se uma realidade política.
O desrespeito chocante, irresponsável e cruel de todos estes
conceitos nos últimos anos não é novo. A história de outras regiões
mostra quão frágeis são as leis que supostamente nos protegem quando um
governo está determinado a seguir um caminho contrário. Menos de dez
anos depois da Segunda Guerra Mundial, e apenas oito depois da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, os primeiros relatos do uso
de tortura pelos franceses contra os argelinos que lutavam pela
independência começaram a emergir, com justificativas que hoje parecem
muito familiares.
Os primeiros relatórios oficiais, em 1955, admitiam que alguma violência fora praticada contra prisioneiros suspeitos de estarem ligados à Frente de Libertação Nacional, mas que isso “não era tortura suficiente”. “A água e os métodos da energia elétrica, desde que usados corretamente, são usados para produzir um choque mais psicológico do que físico e, portanto, não constituem crueldade excessiva”.
Os primeiros relatórios oficiais, em 1955, admitiam que alguma violência fora praticada contra prisioneiros suspeitos de estarem ligados à Frente de Libertação Nacional, mas que isso “não era tortura suficiente”. “A água e os métodos da energia elétrica, desde que usados corretamente, são usados para produzir um choque mais psicológico do que físico e, portanto, não constituem crueldade excessiva”.
Sartre escreveu sobre o choque de perceber que a tortura havia
reaparecido tão cedo, depois de ter sido classificada como uma aberração
de governos psicóticos e degenerados, dispostos a violar todos os
princípios universalmente compreendidos e reconhecidos de justiça: “Em
1943, na Rue Lauriston, os franceses estavam gritando de agonia e dor e
toda a França podia ouvi-los. Naqueles dias, o resultado da guerra era
incerto e nós não queríamos pensar sobre o futuro. Só uma coisa parecia
impossível em qualquer circunstância: a de que um dia homens estariam
gritando por causa de pessoas agindo em nosso nome”.
A ilustração da capa do meu livro, Despachos do Lado Escuro, é de Shafiq Rasul, um jovem inglês de Tipton, em West Midlands, que poucas horas depois de regressar do cativeiro ilegal na Baía de Guantánamo entendeu a necessidade de deixar registrada aquela realidade. Ele lutou para preparar um relatório, ilustrado com desenhos, na ausência de quaisquer fotografias, do que tinha sido feito com ele. Logo depois, o desafio legal de sua família foi batalhar pelo seu direito de contar o que viu (o caso Rasul versus Bush). O Supremo Tribunal dos EUA decidiu em favor de Shafiq Rasul. O argumento vencedor? Que os prisioneiros de Guantánamo deveriam ter acesso a recursos jurídicos e a advogados que poderiam entrar na prisão e, pouco a pouco, trazer relatórios, não apenas dos horrores físicos e mentais causados por ou em nome dos americanos, mas da cumplicidade do país (em todos os níveis) em seu cativeiro ilegal.
Não queriam que nós soubéssemos de nada disso. A questão ainda sem
resposta, de extrema relevância, no entanto, permanece: uma vez que
sabemos, o que nós faremos a respeito?
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