Brasil-China é plano Marshall sem ideologia |
"Não há, na história diplomática brasileira, o
registro de qualquer evento desta envergadura, envolvendo um espectro
tão amplo e variado de atividades estratégicas", comenta Paulo Moreira
Leite, diretor do 247 em Brasília, sobre os 35 acordos bilaterais
firmados entre os dois países essa semana, cujo alcance real é de US$ 53
bilhões em investimentos no Brasil; "É um Plano Marshall sem
contrapartidas políticas nem ideológicas", opina o embaixador José
Alfredo Graça Lima, que coordenou as negociações pelo lado brasileiro,
lembrando do programa de investimentos criado pelos EUA após a Segunda
Guerra; anunciado numa conjuntura em que a oposição faz o possível para
criar um grande pessimismo em torno do futuro do país, diz PML, o acordo
levou o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães a ironizar: "ou os chineses
são desinformados e totalmente equivocados, ou quem imagina que o
Brasil enfrenta uma situação catastrófica precisa aprender prestar
atenção à realidade"
A principal dificuldade para se compreender o alcance real do conjunto de acordo de US$ 53 bilhões para investimentos da China no Brasil reside em sua dimensão. Embora possam ser resumidos, hoje, a um simples calhamaço com algumas centenas de folhas de papel, autografadas pelas autoridades dos dois países, os 35 acordos bilaterais entre os dois governos envolvem um conjunto gigantesco de decisões, possibilidades e perspectivas, formando um bloco de medidas capaz de produzir um impacto tão grande em nosso futuro que é difícil encontrar um parâmetro de comparação.
Não há, na história diplomática brasileira, o registro de qualquer
evento desta envergadura, envolvendo um espectro tão amplo e variado de
atividades estratégicas como mineração, petróleo, defesa, aeronáutica,
ferrovias, exportação de carne — e ainda um curioso programa de
cooperação esportiva para aperfeiçoamento de atletas de ping-pong e
ainda de badminton, aquele esporte que é uma mistura de vôlei de praia e
jogo de peteca, muito popular na China e quase desconhecido no Brasil.
Anunciado numa conjuntura em que a oposição faz o possível para criar
um grande pessimismo em torno do futuro do país, o acordo levou o
diplomata Samuel Pinheiro Guimarães — secretário-geral do Itamaraty na
gestão de Celso Amorim, ministro nos dois mandatos de Lula — a fazer uma
ironia em entrevista ao 247: "ou os chineses são desinformados e
totalmente equivocados, ou quem imagina que o Brasil enfrenta uma
situação catastrófica precisa aprender prestar atenção à realidade."
Crítico do programa de ajuste econômico que marca o segundo mandato de
Dilma, Samuel também afirma: "ninguém investe 50 bilhões de dólares num
país à beira do abismo. Muito menos quem tem as maiores reservas do
mundo e pode escolher aonde coloca cada centavo."
Em busca de uma referência histórica para o acordo com a China,
diplomatas ouvidos pelo 247 admitem alguma semelhança entre os acordos
assinados no início da semana e o Plano Marshall, programa de
investimentos criado pelo governo dos Estados Unidos logo depois da
Segunda Guerra Mundial, que permitiu a reconstrução da economia européia
nas décadas seguintes.
"Mas é um Plano Marshall sem contrapartidas políticas nem ideológicas", adverte o embaixador José Alfredo Graça Lima, que coordenou as negociações pelo lado brasileiro. Assim batizado em homenagem ao então secretário de Estado George Marshall, a partir de 1947 o plano que leva seu nome mobilizou US$13 bilhões na época — cerca de US$ 130 bilhões em dinheiro de hoje — para produzir uma dupla mudança no Velho Mundo, que teve impacto em todo planeta. Se, de um lado, contribuiu para modernizar uma economia destruída pelos bombardeios dos próprios aliados, que carregava marcas duradouras da sociedade aristocrática do século XIX, também jogou um papel decisivo para atrair os países da chamada Europa Ocidental para a áerea de influência política dos Estados Unidos. Foi assim que França, Italia, Inglaterra e outros países se consolidaram como aliados incondicionais de Washington durante a Guerra Fria, condição assegurada por laços econômicos, diplomáticos — e também militares, através da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Os acordos Brasil-China têm como finalidade as metas de cada país neste século XXI: crescimento da economia, distribuição de renda, inclusão dos mais pobres — e assim por diante.
Com uma postura que a maioria dos observadores concorda em definir
como 100% pragmática, a diplomacia chinesa convive com indiferença
absoluta pelo mais diversos regimes políticos. Não debate assuntos
internos dos países-anfitriões e não gosta de ser forçada a tratar de
seus próprios tabus, onde a área de direitos humanos é sempre uma
questão delicada. Suas reais finalidades externas começam e terminam na
economia. Até pelo tamanho de seu país e a dimensão de sua população de
1,3 bilhão de almas, os chineses são caçadores de fontes de matérias
primas de todo tipo e tem uma preocupação permanente em encontrar
mercado para suas mercadorias — o país, hoje, tem a maior produção
industrial do planeta.
Como ocorre com boa parte dos episódios relevantes da evolução
humana, a aproximação entre brasileiros e chineses não foi feita por uma
sucessão de atos de pura vontade política, mas pela capacidade das
partes em dar respostas racionais diante de circunstâncias definidas.
Os dois países começaram a aproximar de verdade quando o Brasil
consumava a transição da ditadura militar para a democracia, num
processo simultâneo à consolidação do programa de reformas — na época
chamado de "economia socialista de mercado" — realizado por Deng Xiao
Ping. Foi naquele período que José Sarney fez uma viagem a Pequim, foi
recebido pelo próprio Deng e debateu tratados de natureza diversa,
inclusive espacial.
No governo Luiz Inácio Lula da Silva, onde a diplomacia brasileira
consumou uma guinada definitiva em direção aos países que começavam a
ser chamados de emergentes, o Itamaraty deu um voto de imenso valor
diplomático quando, nos debates da Organização Mundial de Comércio,
aceitou incluir a China na categoria dos países que possuem uma
"economia de mercado." O nascimento dos BRICS ajudou a pavimentar o
processo construção de um pólo diplomático alternativo ao lado de Índia e
África do Sul, também, mas os 35 acordos da semana passada têm natureza
bilateral.
Reúnem interesses complementares de brasileiros — cuja economia pede
novos investimentos — e de chineses, que não podem cumprir um
planejamento econômico destinado a modernizar o país e oferecer novas
oportunidades a sua população sem abrir mercados externos para
investimentos produtivos, que lhe permitam empregar centenas de milhões
de pessoas.
Num mundo em prolongada crise econômica desde o colapso dos
derivativos, em 2008, Pequim movimenta uma máquina em outro percurso,
que não enfrenta concorrentes nem mesmo rivais.
Afundada em seus programas de austeridade, a Europa não consegue sair
do próprio atoleiro e tem sido incapaz de responder ao drama — modesto
sob todos os pontos de vista — até de uma economia como a da Grécia, que
pede um pouco, só um pouco, de oxigênio para respirar. O desempenho dos
Estados Unidos tem sido um pouco melhor. Nem de longe, contudo, os
bancos que governam a economia norte-americana têm demonstrado apetite
para levantar o mercado interno de forma regular, e muito menos para
estimular o crescimento fora dos EUA. Preferem alimentar-se no
tradicional cassino e acumular ganhos espetaculativos. O resultado é que
a esperada recuperação mundial se mostra lenta, sem um sinal visível
nem convincente.
Neste ambiente em geral pouco promissor, a China, com o segundo PIB
do planeta, é a economia que faz o contra-ciclo. Crescendo 7,5% ao ano —
já cresceu 10% por um longo período — atua como uma locomativa na
contra-corrente de uma tendencia mundial ao crescimento baixo e mesmo a
recessão.
Vem daí o papel crescente que a China passa a desempenhar fora de
suas fronteiras, ocupando espaço — sempre pacificamente, sem estimular
atritos políticos — que até há pouco pareciam reservados aos Estados
Unidos. O desembarque no Brasil, na semana passada, consumou uma vitória
indiscutível do Dilma Rousseff, também. "Demonstra a credibilidade do
país", afirma Graça Lima.
Experimentado arquiteto da diplomacia comercial brasileira, a estrela
de Graça Lima iluminou-se no governo Fernando Henrique Cardoso, perdeu
força durante os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e, de uns
tempos para cá, recuperou o brilho durante o governo Dilma Rousseff. Na
condição de Subsecretário de Assuntos Políticos 2, área responsável
pelas relações com os países da Ásia e com os BRICS, Graça Lima conduziu
negociações acompanhadas, de perto, pela própria presidenta da
República — que sempre devotou gosto e atenção especial às negociações
com a potência asiática. Semana sim, semana não, nos últimos meses Graça
Lima recebia missões diplomáticas de Pequim no gabinete no Itamaraty,
em conversas destinadas a acertar detalhes dos acordos. Os pontos mais
complicados, como se pode imaginar, eram os urgentes e importantes,
envolvendo a venda de aviões e as ultimas barreiras para a exportação da
carne brasileira — e só foram resolvidos poucos dias antes da chegada
da comitiva chinesa ao país.
Como se sabe, tão importante quanto a assinatura dos 35 acordos
bilaterais, será o esforço para garantir sua execução em prazos
compatíveis. A convivência econômica entre povos e países está recheada
de iniciativas bem sucedidas e também de idéias que deram errado. Os
anos iniciais do Plano Marshall foram muito menos animadores do que se
podia imaginar no futuro. A Aliança para o Progresso, de 1960, que seria
um esforço de John Kennedy para estimular o crescimento da América
Latina em bases democráticas para fazer frente ao apelo da revolução
cubana encerrou-se sem progressos visíveis e o apoio a golpes militares
contra governos progressistas. O futuro dos países não se encontra numa
bola de cristal e sempre será um horizonte formado por surpresas e
movimentos inesperado. Mas é difícil negar que, por sua história
recente, Brasil e China, tão diferentes, tão distantes, têm um conjunto
de interesses diferentes mas complementares que podem ser atendidos de
forma proveitosa pelas partes. Esta é a racionalidade do acordo.
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