Albino Luciani, o papa João Paulo I |
A mídia começa a especular sobre os
reais motivos pelos quais Joseph Ratzinger resolveu renunciar ao cargo de Sumo
Pontífice. Todos falam que Bento XVI tomou a drástica decisão tanto em função
da idade avançada quanto da constatação de que perdera o controle sobre a Cúria,
o “Politburo” do Vaticano. É evidente que uma instituição como a Igreja Católica,
com dois mil anos de estrada, acumula muitas histórias de lutas pelo poder, conspirações,
assassinatos, golpes e otras cositas más,
que fazem a delícia dos ficcionistas. E, convenhamos, a realidade muitas vezes
supera a ficção.
Veja-se o caso de João Paulo
I (Albino Luciano), o “papa sorriso”, cujo pontificado durou apenas 33 dias. Eleito
em 26 de agosto
de 1978, 20 dias depois da morte de Paulo VI, o novo pontífice de
cara recusou a cerimônia formal de coroação, abdicando da tiara (coroa
pontificial). Jovem para os padrões do Vaticano (tinha 64 anos), ele se mostrou
disposto a fazer mudanças profundas no funcionamento da Santa Sé. Luciani teria
dito a assessores próximos que iria rever a estrutura da Cúria, reforçando a
colegialidade dos bispos, e investigar o Instituto para Obras Religiosas (IOR),
principal financiador do Banco Ambrosiano, e que se envolveu em atividades com
a máfia e a loja maçônica P-2 (Propaganda
Due), de Lício Gelli.
O arcebispo Marcinkus e seu protetor, João Paulo II |
Para tanto, o papa tinha que
afastar o poderoso cardeal Paul Marcinkus, presidente do IOR, conhecido pela
alcunha de “banqueiro de Deus”. O envolvimento da máfia e da P-2 nas finanças
do IOR, via Banco Ambrosiano, transformou-se numa rede de intrigas, com ações
fraudulentas e ilegais e assassinatos. Entre essas ações do Ambrosiano estavam
o financiamento de partidos políticos conservadores na Itália e de rebeldes
antissandinistas da Nicarágua e do sindicato polonês Solidariedade. O papa também
teria uma lista, elaborada pelo jornalista Mino Pecorelli, membro arrependido
da P-2, que vinculava o secretário de Estado do Vaticano, Jean Villot, e o
cardeal Marcinkus, à loja maçônica de Lício Gelli. Mino Pecorelli foi
assassinado em 1979, Roberto Calvi, presidente do Ambrosiano, seria encontrado
enforcado numa ponte em Londres em 1982 e o banco iria à falência naquele mesmo
ano.
O banqueiro Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano |
No dia 29 de setembro de 1978, João
Paulo I foi encontrado morto em seu quarto. Segundo o Vaticano, a causa da
morte teria sido um infarto agudo no miocárdio. Havia a suspeita de que o papa
tinha tomado, inadvertidamente, um vasodilatador, mas o Vaticano se negou a
autorizar uma autópsia do corpo. E as contradições começaram a se acumular: a
Santa Sé afirmou que o pontífice tinha uma saúde frágil e debilitada, o que
posteriormente seria desmentido pelo seu médico, dr. Antonio Da Ros, e pelo
secretário de Luciani, Diego Lorenzo; o corpo do papa não foi encontrado pelo bispo
John Magge, como afirmara a nota do Vaticano, mas pela irmã Vicenza Taffarel,
que foi proibida pela Cúria de contar a verdade. É claro que, com tantos mistérios,
várias teorias conspiratórias ganharam corpo. A principal foi elaborada pelo
jornalista David Yallop, que escreveu um livro (Em nome de Deus) em que afirmava categoricamente que João Paulo I tinha
sido assassinado pela Cúria.
Em relação à
morte do papa, o cardeal brasileiro Aloísio Lorscheider teve a coragem de declarar:
“As suspeitas continuam no
nosso coração como uma sombra amarga, como uma pergunta à qual não foi dada
resposta”. Mesmo depois de tanto tempo, o Vaticano ainda silencia sobre a
morte de João Paulo I. O fato é que um novo Conclave elegeu como papa o polonês Karol
Wojtyla. Este, em um gesto de aparente homenagem ao antecessor, adotou o nome
de João Paulo II. Por outro lado, agiu firmemente no sentido de destruir a
obra do papa anterior, encerrando as investigações sobre o Ambrosiano, mantendo
intactas as estruturas eclesiásticas da cúpula do Vaticano e protegendo o
arcebispo Paul Marcinkus, mesmo quando a Justiça americana mandou prendê-lo.
Não é preciso ser adepto de
teorias conspiratórias, como David Yallop, nem tampouco ficcionista, como Dan
Brown, para supor que a morte de João Paulo I não foi de causas naturais como o
Vaticano quer fazer crer. Se algum dia, por algum milagre, abrirem os arquivos do
Vaticano, saberemos...
SERÁ O BENEDITO?
Joseph Ratzinger, prestes a
se tornar o primeiro ex-papa em quase 600 anos, escolheu o nome de Benedictus XVI
quando foi eleito para chefiar a Igreja Católica em 2005. Ora, a tradução de
Benedictus – que quer dizer “bendito” ou “abençoado” – é Benedetto (italiano);
Benoit (francês); Benedikt (alemão); Benedicto (espanhol). Por que raios, então,
que em português não seria Benedito? Bem, Benedito é a forma erudita de tradução;
enquanto que “Bento”, é a forma popular, como os portugueses trouxeram para o
Brasil. E na santologia (não sei se existe esse termo) católica há um São Bento
(480-547), que é o fundador da ordem beneditina, origem das demais ordens monásticas.
Mas há também um São Benedito (1524-1589), siciliano de origem etíope. Segundo
os historiadores, quando os negros o tornaram seu santo de devoção,
batizaram-no com o nome erudito para evitar confusão com o São Bento, já
consagrado, mas que também poderia ter sido Benedito. Curioso é que, quando da
eleição de Bento XVI, alguns telejornais saíram com a tradução “Benedito XVI”,
mas ela foi rapidamente abandonada. Alguns levantaram suspeita de racismo –
imagine confundir o nome adotado pelo papa, ainda mais sendo alemão, com o nome
de um santo negro... Seja como for, só no Brasil – e em Portugal, por suposto –
Benedito virou Bento.
CRÍA CUERVOS
Benedictus XVI |
Uma nota do ano passado do L’Osservatore Romano, órgão oficial da
Santa Sé, disse que o papa Bento XVI era “um pastor cercado de lobos”. O que o
jornal não disse foi que, como cardeal e, depois, papa, Ratzinger ajudou a alimentar a matilha.
Bento XVI foi o herdeiro e continuador da mais exitosa “reação termidoriana” de
que se tem notícia na Igreja Católia – o pontificado de João Paulo II. Por reação
termidoriana entende-se um movimento de reação sistemática a um processo
revolucionário, como aconteceu na França depois de 1794, com a queda dos
jacobinos e a ascensão do Diretório.
Papa João XXIII |
Quando o cardeal Giuseppe
Roncali foi eleito papa João XXIII em 1958, aos 77 anos, acreditava-se que ele
seria um pontífice transitório, depois do extenso, absolutista e reacionário reinado
de Pio XII. No entanto, em menos de cinco anos, João XXIII provocou uma
verdadeira revolução na Igreja Católica ao convocar o Concílio Vaticano II
(1962-1965), que promoveu um aggiornamento
da instituição com a modernidade, suplantando a oposição sistemática da Santa Sé
a tudo o que veio depois do Iluminismo. Um dos principais frutos do Vaticano II
foi a Teologia da Libertação, com o engajamento do clero dos países do Terceiro
Mundo com as forças que lutavam pela libertação nacional e pela justiça social.
Paulo VI, sucessor de João XXIII, seguiu timidamente os passos de Roncali até
sua morte, em 1978.
João Paulo II e Javier Echeverría, da Opus Dei |
Mas Karol Wojtyla, o papa
polonês, empreendeu uma vigorosa marcha à ré e, durante seu pontificado
(1978-2005), destruiu pacientemente tudo o que o Vaticano II erigira. Enquanto
perseguia bispos progressistas, João Paulo II protegia mafiosos, como o cardeal
Marcinkus, envolvido com o escândalo do Banco do Vaticano, e reforçava reacionários
como Escrivá Balaguer, da Opus Dei, que foi canonizado. O resultado foi um
esvaziamento nunca visto pela Igreja, agravado com o escândalo de milhares de denúncias
de pedofilia contra o clero, a maioria acobertada pelo Vaticano.
João Paulo II e Marcial Maciel, dos Legionários de Cristo |
O papa João Paulo II não era
apenas um superstar midiático, mas um
instrumento da Cúria e dos elementos mais reacionários da Igreja Católica. Ratzinger,
embora comungando os ideais tridentinos de seus antecessor, encontrou ferrenha
oposição à tímida limpeza que tentou empreender. Afinal, enquanto João Paulo II
esteve vivo, a ordem foi proteger as “ovelhas desgarradas”. Um exemplo típico foi
o caso dos Legionários de Cristo: Marcial Maciel, fundador do movimento, foi condenado
nos EUA por pedofilia, mas elevado ao altar de assessor de João Paulo II. Bento
XVI conseguiu afastá-lo. Mas não teve forças ou vontade política para ameaçar o
poder da Cúria e dos movimentos integristas.
“A Cúria forjada nos tempos
de Wojtyla era uma reunião atrabiliária do pior de cada diocese, desde evasores
fiscais passando por contrarrevolucionários latino-americanos e por integristas
da pior espécie. Essa Cúria digna de O
Chefão III sempre viu com maus olhos as tentativas de Ratzinger de fazer
uma limpeza de fundo, enquanto os movimentos mais pujantes e lucrativos, como
os Legionários, a Opus Dei e a Comunhão e Libertação, torpedeavam qualquer
tentativa de regeneração”, diz o El Pais.
Segundo El País, Ratzinger, intelectual e pouco afeito às tarefas de
governo, mostrou-se um pontífice débil. O resultado é que, nestes sete anos, a máfia
do Vaticano teve êxito em impedir a renovação da Cúria e a modernização da Itália,
especialmente nos setores de finanças e informação, impérios onde mais poder e
interesses têm a Opus Dei e a Comunhão e Libertação – os dois movimentos, ao
lado dos Legionários – que mais prosperaram sob o pontificado de Wojtyla. “O
papado de Ratzinger foi um rotundo fracasso [...] Os lobos ganharam a partida,
e sua renúncia [...] o situa como um pastor derrotado que, farto de lutar, se
retira à clausura antes de ser devorado pelos abutres. Que seja o primeiro caso
em quase 600 anos diz muito sobre o nível de iniqüidade com a qual conviveu. E
que até agora isso não tenha vazado diz tudo sobre sua solidão”, conclui o El Pais.
Como dizia aquela máxima
espanhola: “cría cuervos y te sacarán los
ojos”.
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