Em novo artigo, o jornalista Paulo Moreira Leite,
diretor do 247 em Brasília, aponta a mensagem central da presidente
Dilma Rousseff, durante sua diplomação para o segundo mandato: “Temos
que saber punir o crime, não prejudicar o país e sua economia”; prevendo
que, por trás das denúncias, logo se armará um coro a favor de medidas
privatizantes, Dilma colocou a discussão em termos claros: “Toda vez
que, no Brasil, se tentou condenar e desprestigiar o capital nacional
estavam tentando, na verdade, dilapidar o nosso maior patrimônio –
nossa independência e nossa soberania”.
O dia da diplomação de Dilma Rousseff, vitoriosa no final uma das
mais apertadas campanhas presidenciais desde 1889, quando Deodoro
proclamou a República, começou tenso e complicado mas terminou com um
surpreendente discurso da presidente, à noite.
Usando o microfone no salão vermelho do Tribunal Superior Eleitoral,
Dilma não dirigiu-se a platéia de políticos, juristas e demais
autoridades presentes, mas fez um pronunciamento voltado ao conjunto dos
brasileiros, onde sua aprovação subiu para 40% de bom e ótimo nos
ultimos meses do ano. A presidente falou da Petrobras, defendeu os
trabalhos da Comissão da Verdade e deixou claro que pretende manter os
compromissos de defesa do emprego e do salários entre 2015 e 2019.
Dilma não respondeu a todas as interrogações que acompanham a
formação do novo mas deu um sinal importante, ao passar 16 minutos
prestando contas a quem a elegeu. É um cuidado indispensável. Embora a
eleição tenha se encerrado há quase dois meses, e ninguém discuta a sua
vitória, a oposição mantém-se firme na estratégia de procurar artifícios
e atalhos para quesitonar o resultado.
Começando pelo começo. Ontem, cinquenta e dois dias depois de perder a
eleição nas urnas, o PSDB tentou estragar a festa de diplomação com uma
tentativa de virar o jogo às costas do eleitor e
foi ao TSE pedir a cassação do mandato de Dilma e de seu vice, Michel
Temer, alegando “abuso de poder, político e econômico”. Num argumento
que sugere uma tremenda falta de consideração estatística pela decisão
soberana dos eleitores, alegou também que a presidenta obteve uma
vantagem “pífia” sobre Aécio Neves. (Foram 3,5 milhões de votos, ou
3,3%, margem típica de uma eleição disputada, em qualquer parte do mundo
— onde nenhum político sério de eleitores-pífios.)
Demonstrando uma imensa falta de critério para escolher caminhos para
chegar ao poder na primeira oportunidade, o PSDB solicitou, no mesmo
documento, que, depois do imaginário afastamento de Dilma e Temer, seus
candidatos, Aécio Neves e o vice, Aloysio Nunes Ferreira, sejam
empossados automáticamente nas vagas de presidente e vice — sem que o
eleitor tenha o direito de dizer o que acha disso tudo. Como sabem os
eleitores de diversas cidades brasileiras que já tiveram prefeitos e
vices cassados pela Justiça, a jurisprudência recomenda que sejam
realizadas eleições sempre que se anula a vitória de um candidato que
teve apoio superior a 50% do eleitorado. Dessa maneira, tenta-se impedir
a posse de um candidato que não teve apoio da maioria — pífia ou não –,
como determina o princípio básico de toda eleição.
O temor, de novo, é a voz dos pífios. Numa hipotética segunda eleição
— que está fora de todo horizonte real — a emenda iria sair muito pior
do que o soneto. Isso porque o PT seria obrigado a convocar Luiz Inácio
Lula da Silva e seu IBOPE de mais popular político brasileiro para
entrar em campo.
O pedido contra Dilma confirma a imensa dificuldade do PSDB para
aprender que nem sempre se pode ganhar na luta política. Isso é
surpreendente, considerando que já foram quatro derrotas presidenciais
consecutivas, sem falar no sério risco de Marina Silva tirar Aécio do
segundo turno em 2014.
No discurso de encerramento da cerimonia de diplomação, o ministro
José Augusto Toffoli, presidente do TSE, disse que “eleições concluídas
são, para o poder o judiciário eleitoral, uma página virada. Não haverá
terceiro turno na Justiça Eleitoral. Não há espaço. Que os especuladores
se calem. ”
Toffoli ainda revelou para a platéia de autoridades, advogados e
promotores que assistiam a cerimonia: ” Já conversei com a corte e esta é
a posição inclusive de nosso corregedor geral. Não há espaço para
terceiro turno que possa vir a cassar o voto desses 54.501.118
eleitores,” disse.
Sentada ao lado do presidente do TSE, Dilma sorriu e pousou a mão em seu braço.
No final da campanha presidencial, Toffoli passou a ser considerado,
nos meios jurídicos do governo e do Partido dos Trabalhadores, como a
demonstração definitiva da “incrível infelicidade de Lula ao indicar
ministros do Supremo,” como escreveu o colunista Fernando Brito, do
Tijolaço. Isso ocorreu em função de diversas decisões contrarias a Dilma
no TSE, em situações nas quais parecia muito razoável, aos advogados da
presidenta-candidata, que um magistrado equilibrado tivesse apoiado seu
ponto de vista. Nos últimos meses, muitas atitudes de Toffoli são
vistas como demonstrações de poder de um magistrado que, apesar da
origem petista, não conseguiu manter uma boa interlocução junto aos
centros de decisão do governo Dilma.
Embora os brasileiros tenham o direito a sua cota de alívio ao ouvir o
presidente do TSE rejeitar aventuras contra a vontade do eleitor, não
custa lembrar a boa tradição jurídica que ensina que os magistrados
devem falar através dos autos. Também devem evitar apreciações de
caráter político.
É uma questão de método, dizem os filósofos. O mesmo juiz que se
considera no direito de afirmar que “não haverá terceiro turno, não há
espaço,” pode acordar, um belo dia, e concluir que agora “há espaço”e
que a tal página “não foi virada” e que os especuladores “devem falar em
vez de calar.”
A atuação de Dias Toffoli à frente do TSE, em 2014, contribuiu para
criar situações desnecessárias de tensão e de alarme falso. Ele
demonstrou pressa em dar início ao processo que levou a substituição de
Henrique Neves, um ministro cujo mandato expirou no início de novembro,
que tinha função de relator das contas de campanha do PT. Não havia a
menor urgência real no caso. A escolha era um direito natural da
presidente Dilma Rousseff, favorável a manutenção de Henrique Neves,
como o próprio Toffoli. Mas outras vozes dos meios jurídicos preferiam —
e fizeram sua opção chegar a Dilma de modo assertivo, digamos assim — a
indicação do ministro-substituvo Admar Gonzaga para o posto.
A divergência acabou gerando um impasse, quando Toffoli deu início ao
processo aleatório que terminou por conduzir nomeação de Gilmar Mendes
para relatar as contas da campanha do PT, situação temerária quando se
considera as críticas duras e sem constragimento que o ministro faz ao
partido.
No final, Gilmar aprovou as contas, com ressalvas, por 7 a 0, placar
festejado pelo PT em função das avaliações que previam uma rejeição por 4
a 3. Apesar do placar típico de goleada, não foi uma decisão sem
sequelas.
Por trás da palavra “ressalvas” escondem-se objeções que ajudaram o
PSDB a formular seu pedido de impugnação. O selo da assessoria técnica
do TSE lhe dava legimitidade, para usar um termo caro a Fernando
Henrique Cardoso. Também pode ser usado mais tarde, caso a temperatura
política do país volte a subir. Gilmar Mendes entregou as supostas
irregularidades denunciadas no laudo da Assessoria Técnica para a
Polícia Federal e o Ministério Público. Isso quer dizer que que, mesmo
sem provas consistentes, poderão auxiliar a oposição a fustigar o
governo
Num livro de 178 páginas, “A Classe Operária Vai ao Parlamento,” o
historiador Dainis Karepovs descreve as eleições no Brasil da República
Velha, anterior a 1930, mostrando uma situação que tem paralelos com a
disputa de hoje.
A obra descreve um processo que, sintomaticamente, era chamado de
“Terceiro Escrutínio”, ou “Degola”, e que tem uma semelhança óbvia com
toda tentativa contemporânea de Terceiro Turno. A partir de um complexo
processo de apuração, contagem e queima de votos, as forças da ordem
arrumavam o resultado saído das urnas, assegurando vitórias permanentes
para seus candidatos.
Os poucos concorrentes de oposição que saiam vitoriosos, explica
Karepovs, colhiam vantagens de amizades poderosas e outros recursos
invisíveis que facilitavam uma acomodação a seu favor.
O Brasil de 2014 não tem a mais remota relação com aquele país
anterior a Revolução de 1930. A mudança essencial, que se consolidou em
várias Constituições até chega a de 1988, consiste na compreensão — real
e não apenas literária — de que os poderes emanam do povo e em seu nome
são exercidos.
Isso explica as quatro vitórias consecutivas de uma candidatura como a
de Lula-Dilma, que seriam impensaveis mesmo no Brasil da Carta de 1946,
onde um dissidente saído da elite governente foi levado ao suicídio e o
outro derrubado por tanques, baionetas e jornais. Mesmo as amplas
garantias democráticas de hoje não impedem movimentos que tentam
explorar atalhos antidemocraticos para recuperar posições negadas pelas
urnas.
Procurando descrever os esforços dos primeiros líderes de
trabalhadores que tentaram defender seus direitos no plano político, “A
Classe Operária vai ao Parlamento” permite analogias inspiradoras com o
Brasil atual, quando se procura criminalizar o governo de um partido
nascido nas lutas populares.
No ponto central de seu pronunciamento, a Petrobras, Dilma fez um
discurso destinado ao país inteiro mas, especialmente, a seus eleitores.
Aí reside a importância do que ela disse. Aos petistas que enfrentam as
denúncias lembrando as inesquecíveis mazelas produzidas no passado pelo
PSDB, a presidente lembrou que o governo recebeu uma “herança nefasta”
mas ela “não pode servir de álibi para ninguém nem para nada.”
A quem procura construir uma visão apocalíptica da Petrobras,
torcendo para a abertura de uma crise política capaz de emparedar o
governo, lembrou que se é preciso punir as práticas condenáveis de
“alguns funcionários”, também é necessário “punir as pessoas, não
destruir as empresas,” apontado para o verdadeiro risco: “Temos que
saber punir o crime, não prejudicar o país e sua economia. ” Também
falou em abrir as portas para combater a corrupção e não para impedir o
crescimento. Prevendo que, por trás das denúncias, logo se armará um
coro a favor de medidas privatizantes, Dilma colocou a discussão em
termos claros: “Toda vez que, no Brasil, se tentou condenar e
desprestigiar o capital nacional estavam tentando, na verdade, dilapidar
o nosso maior patrimônio – nossa independência e nossa soberania.”
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