Marajó global: a ilha da fantasia
Por Lúcio Flávio Pinto | Cartas da Amazônia
A cena se deu faz poucos anos.
O jornalista chega a uma fazenda na ilha de Marajó, o centro de um
arquipélago situado na foz do rio Amazonas, no litoral do Pará, com
outros três milhares de ilhas de todos os tamanhos.
A maior, com 50 mil
quilômetros quadrados, supera, sozinha, em tamanho, quatro dos 27
Estados brasileiros.
É a maior ilha marítimo-fluvial do mundo. O emaranhado de água e
terra é a teia de um labirinto a induzir mistério: o continente se
esfrangalha ou a ilha é que volta a se agregar ao território
continental?
O repórter conversa com um velho vaqueiro e seu filho, também vaqueiro. Ambos descendem de escravos africanos que chegaram à ilha com a pecuária, quase três séculos atrás. Faz pergunta ao pai, de quase 70 anos.
Mas o pai não responde ao jornalista. Responde ao filho, que repassa a
resposta ao inquiridor, sob o olhar vigilante do pai, atento a qualquer
desvio na "tradução" do que disse, à sua maneira, cantada e alegórica,
muito viva.
É uma cena surrealista. Os três personagens falam a mesma língua, mas
o vaqueiro mais novo age, convicto e cioso das suas prerrogativas, como
intérprete do patriarca, envelhecido de tanto amansar gado. Antes eram
animais das raças brancas, nos últimos tempos búfalos asiáticos.
É o maior plantel bubalino do Brasil. O animal mais cria do que é
criado pelo homem, livre pelos campos gerais ou chafurdando na lama e
nos alagados da época das chuvas pesadas. Quase anfíbio como o caboclo,
que, na época das águas grandes, toca o rebanho não sobre um cavalo, mas
na montaria dos rios amazônicos, a canoa.
O repórter pergunta ao vaqueiro ancestral onde, afinal, é o limite da
fazenda sem fim visível, em cujas demandas curtiu a pele ao sol e
perdeu o viço da expressão. As fazendas marajoaras se medem por milhares
de hectares. A maior tinha 100 mil hectares antes de ser retalhada e
vendida pelos herdeiros, como está acontecendo em ritmo incrementado na
maioria delas.
As 30 famílias originais, que sucederam os religiosos no poder,
quando o marquês de Pombal expulsou da Amazônia os incômodos jesuítas,
estão deixando de ser as donas de toda a ilha, das suas riquezas, da sua
gente. Mas ainda são os coronéis, os doutores, quase como senhores de
baraço e cutelo, como numa Sicília tropical, isolada e fechada em si
mesma.
— O limite da nossa fazenda é onde o nosso gado empurra o gado do
vizinho — responde o vaqueiro, com a naturalidade de quem vê limites
dessa maneira secular, sem cercas ou pontos astronômicos.
Como se os primeiros marajoaras mal tivessem se acomodado de uma
inacreditável viagem pelos mares, entre continentes, sem passar pelo
estreito de Bhering, há milhares de anos, em percurso direto, sem escala
nas possessões de incas, maias, astecas e, pela força da tecnologia,
espanhóis, do outro lado do mundo.
Não é essa a ilha do Marajó que a TV Globo exibe todos os dias da
semana, às 18 horas, em sua telinha da fantasia. O Marajó platinado tem
mais décor, mais gente bonita, de fala arrebitada (e decorada), de
gestos olímpicos e andar cosmopolita. O Marajó das cenas da novela é
perene como perfume barato e autêntico como uma nota de mil reais.
Não que seus produtores precisassem voltar ao passado e cultivar o
naïf, tosco e primitivo. Como sempre, a Amazônia é o que sobre ela
projeta seus desejos, preconceitos e instintos aquele que, do centro
para a periferia, de cima para baixo, diz o que ela precisa ser, deve
ser para ser aceita como a região tardia do Brasil, mal assimilada, mal
aculturada.
O Marajó, esse pedaço de terra esmagado pelo maior rio do mundo e um
oceano de águas fortes, não é mais aquele, como na música carnavalesca
dúbia (pleonasmo em se tratando de carnaval). E não se sabe ainda o que
será quando "aquele" for apenas memória, daqui a pouco.
Depois de muitos anos esquecido pelos seus conterrâneos continentais,
o Marajó receberá um "grande projeto", como os que têm mudado a feição
da Amazônia. Se tudo der certo, ainda neste ano a ilha receberá energia
firme e abundante da hidrelétrica de Tucuruí.
A energia chegará através de uma linha de transmissão com mais de
1.100 quilômetros de extensão, ao custo de 490 milhões de reais.
Concluída, colocará o Marajó dentro do Sistema Integrado de Energia, que
se espalha por todo país. Fim de uma era. Início de outra.
Pode-se esperar uma grande transformação, embora ainda seja incerta a
sua qualidade. Hoje, 40% dos 437 mil habitantes do Marajó vivem abaixo
da linha da pobreza. O Índice de Desenvolvimento Humano da ilha é de
0,627 (o índice máximo é um), bem abaixo da média nacional, de 0,792.
Só 41% dos habitantes recebem energia, 80% desse mercado concentrado
nas sedes municipais. É uma energia inconstante, fornecida por velhas
usinas geradoras a óleo diesel, que exigem 32 milhões de litros de
combustível a cada ano, ao custo de R$ 90 milhões. Além de poluírem o
ar.
A chegada de energia segura e suficiente deverá ser a maior novidade
dos últimos tempos no Marajó, capaz de tirá-lo da estagnação (ou mesmo
da decadência) que o tem caracterizado.
Mas pode também agravar os seus problemas se desde agora não houver
uma política conseqüente para o melhor uso da energia e a correção dos
problemas que inevitavelmente acarretará.
O primeiro vem com a própria linha, aberta à base de novos
desmatamentos e de eventual destruição de recursos naturais,
arqueológicos e sociais no seu percurso, que constituem o maior
patrimônio da ilha.
A economia do Marajó sofre distorções e interferências políticas que
nada têm a ver com o interesse público. A dependência do governo é quase
absoluta nos municípios mais pobres, talvez justamente por isso.
Dos 2.158 empregos no município de Portel, em 2008, 1.173 eram no
serviço público; em 2006 eles somavam apenas 310. A relação em
Curralinho era de 753 dos empregos totais para 709 do governo.
O crescimento da presença do governo nos últimos anos é mediada por
clientelismo político e desvio de recursos públicos, a partir de
programas de transferência de renda ou de apoio a atividades
tradicionais. O caso mais exemplar é o da pesca,
O seguro/defeso, que visa proteger os cardumes na época da
reprodução, remunerando o pescador durante esse período de quatro meses
de inatividade, se tornou o maior instrumento político-eleitoral da
ilha, além de possibilitar outros desvios.
Em Muaná, por exemplo, de 13 mil habitantes do município, oito mil
foram cadastrados como pescadores para receber o seguro. A maior parte
do peixe consumido no local, porém, vem de fora. De fora também chegaram
muitos moradores urbanos para se metamorfosear em pescadores e receber o
seguro.
A ineficiência e a corrupção do poder público podem impedir que eles
se antecipem à chegada da energia dando-lhe bom uso, e evitando que
agravem problemas como a prostituição, o tráfico de drogas, o
contrabando e a criminalidade em geral, cada vez maiores na ilha.
Afinal, o Pará é o quinto maior produtor e o terceiro maior
exportador de energia do país, mas seus índices de desenvolvimento e
bem-estar social são sofríveis.
A novidade anterior às locações da TV Globo para a sua novela
açucarada foram os arrozeiros de Roraima. Eles tiveram que sair daquele
Estado porque a justiça deu ganho de causa aos defensores dos índios
Yanomami, com os quais conflitaram.
Encontraram seu novo pouso no Marajó. Eles e comportarão de forma
diferente da de Roraima, ou, à maneira da Globo, porão e disporão da
ilha à sua vontade, apenas cenário para suas histórias e alvo do seu
comércio?
A resposta não está em Amor, eterno amor.
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