O coronel Hugo Chávez Frías, um líder controverso, mas legítimo |
Não
creio que o coronel Hugo Chávez Frías e seu “socialismo do século XXI”
sejam um modelo para a moderna esquerda latino-americana. Ao contrário,
ele tem todos os vícios da velha ortodoxia: autoritarismo, militarismo e
messianismo. Mas daí a compará-lo a um ditador, como faz a direita –
civilizada ou de Neardenthal – é estultice ou, na maioria dos
casos, má-fé.
Chávez foi eleito e reeleito e todas as mudanças que ele
fez no país – goste-se ou não delas – foram todas referendadas nas urnas
em eleições limpas. Além do mais, ele mudou a face de um país que, até
sua chegada ao poder, nadava em petróleo mas tinha 70% da população
abaixo da linha de pobreza. Pode-se discutir seus métodos, mas não
negar-lhe legitimidade. Foi o que a oposição tentou fazer há dez anos,
quando empresários, militares e sindicalistas da PDVSA, com apoio
explícito dos EUA, recorreram ao golpe militar para apeá-lo do poder. A
grande mídia, inclusive aqui, apoiou gostosamente a quebra da legalidade
democrática. A Veja, inclusive, manchetou: “A queda do presidente
fanfarrão”. Pouco importava se os golpistas tinham suspendido a
Constituição e as liberdades. Felizmente, graças à mobilização popular e
à pressão diplomática dos vizinhos, principalmente do Brasil, a
quartelada não prosperou. Na época, escrevi uma matéria na IstoÉ cujo
título sacaneava com a manchete da Veja:
Um golpe fanfarrão
Pressão latino-americana e mobilização popular provocam racha nas Forças Armadas e garantem a restituição da legalidade
Pressão latino-americana e mobilização popular provocam racha nas Forças Armadas e garantem a restituição da legalidade
Cláudio Camargo
Foram
necessárias apenas 48 horas para que a Venezuela se desse conta de que
não era mais uma república de bananas, como acreditava boa parte da
oligarquia que domina aquele país, setores da mídia internacional e não
poucos funcionários de alto coturno da Casa Branca, além de badalados
scholars, como Jeffrey Sachs. Na madrugada do domingo 14, os mesmos
comandantes militares que dois dias antes tinham deposto o presidente
Hugo Chávez Frías e colocado em seu lugar o empresário Pedro Carmona
fizeram meia-volta e reconduziram o mandatário legítimo a seu cargo. Em
meio a tropas leais e a multidões de desvalidos que tinham tomado as
ruas de Caracas para protestar contra o golpe, Chávez retornou
triunfante ao Palácio de Miraflores (sede do governo) trazido de
helicóptero da ilha de la Orchila, no mar do Caribe, onde tinha sido
confinado. Trajando roupas civis em vez da tradicional farda de
campanha, Chávez, tenente-coronel da reserva e ele mesmo ex-golpista,
fez um discurso visivelmente emocionado, em que baixou o habitual tom
incendiário e pediu uma “reconciliação nacional”. Brandindo nas mãos ora
um crucifixo, ora um exemplar da Constituição, o presidente tentou
acalmar os acirrados ânimos políticos que em quatro dias deixaram mais
de 40 mortos na Venezuela. “Não venho com ódio ou rancor. Não haverá
nenhuma caça às bruxas”, prometeu Chávez. O presidente ainda esboçou um
ensaio de mea-culpa fazendo um apelo aos adversários políticos: “Os
últimos dias foram uma gigantesca lição para todos nós. Eu também tenho
que refletir e já o fiz.
Estou
disposto a me corrigir, mas não posso ser o único, todos devem fazer o
mesmo”, conclamou. Mas o apelo do presidente reempossado não
sensibilizou a desmoralizada oposição, que teima em insistir que a
reconciliação passa pela renúncia de Chávez, a quem acusa de polarizar o
país com suas políticas populistas. Na quinta-feira 18, ao instalar o
Conselho Federal de Governo para buscar o diálogo com a oposição, Chávez
surpreendeu ao prometer guardar a espada e não usar mais a farda. “Peço
que me ajudem nisso, a guardar a espada e o uniforme. Muito mais do que
isso, quero colocá-los no baú de recordações”, disse.
Pedro Carmona, o Breve |
A
fugaz interinidade de Pedro Carmona revelou-se uma inacreditável
sucessão de desastres. Presidente da Fedecámaras, a poderosa central
sindical do empresariado venezuelano, ele vinha se revelando um
habilidoso líder oposicionista desde o final do ano passado, quando
esteve à testa de um vigoroso movimento de protesto contra o governo. Na
semana passada, a Fedecámaras e a Central dos Trabalhadores da
Venezuela (CTV), que reúne os funcionários da poderosa indústria estatal
de petróleo, convocaram uma greve geral por tempo indeterminado, para
protestar contra mudanças que o governo tinha feito na cúpula da empresa
Petróleo de Venezuela S.A. (PDVSA) e pedir a renúncia de Chávez. Na
quinta-feira 12, centenas de milhares de pessoas se dirigiam ao Palácio
Miraflores e foram violentamente reprimidas por tropas da Guarda
Nacional. Muitos foram alvo de franco-atiradores, provavelmente
paramilitares dos Círculos Bolivarianos, num confronto que deixou pelo
menos 16 mortos e dezenas de feridos.
A
repressão levou os chefes militares, capitaneados pelo comandante do
Exército, general Efraín Vásquez, a exigir a saída de Chávez, que acabou
detido no Forte Tiuna, sede do comando do Exército. Alçado à mais alta
magistratura da Venezuela em meio à mais profunda crise política do país
dos últimos anos, Carmona se mostrou açodado e autoritário. Deu como
certa a versão – falsa, viu-se depois – de que Chávez havia renunciado.
Mal assumiu a presidência, mandou às favas os escrúpulos de consciência –
se é que os tinha – e baixou um decreto suspendendo a Constituição,
dissolvendo o Congresso e fechando o Supremo Tribunal de Justiça. Como
se não bastasse, Carmona destituiu governantes regionais eleitos e
anunciou que novas eleições só ocorreriam dentro de um ano. Sabe-se
agora que tal decreto foi redigido um dia antes da derrocada de Chávez,
tamanha era a certeza dos golpistas no sucesso de sua empreitada. À
margem dos comandos militares e dos líderes sindicais que lhe deram
sustentação, o líder da Fedecámaras articulou com setores empresariais a
dissolução dos poderes, a composição do Ministério e a duração do
governo provisório. Um dos que participaram da elaboração do decreto foi
Isaac Pérez Recao, um dos proprietários da Venoco, empresa petroquímica
da qual Carmona foi o principal executivo.
A
reação não se fez esperar. No início da tarde de sábado 13,
manifestantes chavistas promoveram saques em diversos estabelecimentos
comerciais e começaram a se concentrar, aos milhares, em frente ao
Palácio Miraflores. Foi a senha para que os partidários de Chávez no
Exército começassem a se mobilizar. Pouco depois da uma hora, o general
Raúl Isaías Baudel, comandante da 42ª Brigada de Pára-Quedistas de
Maracay, 110 quilômetros a sudeste de Caracas, se rebelou contra o
governo de Pedro Carmona. Em seguida, foi a vez da Base Aérea do
Libertador, na grande Caracas. No Regimento da Guarda de Honra,
responsável pela proteção do Palácio Miraflores, o subcomandante,
tenente-coronel José Morao, leu um comunicado na tevê declarando
lealdade a Chávez. Dentro do palácio presidencial cercado por
manifestantes, circularam rumores de que os rebeldes legalistas iriam
bombardeá-lo. Foi o suficiente para que os ministros do governo
provisório saíssem em debandada. Acuado, Carmona foi obrigado a rumar
para o Forte Tiuna, sede do comando do Exército. Tomados de surpresa, os
chefes militares recuaram e condicionaram o apoio a Carmona à
restituição da institucionalidade. O presidente-empresário cedeu, mas já
era tarde. Às 17h53, o presidente da Assembléia Nacional, William Lara,
disse que o Congresso não reconhecia o governo transitório. Depois de
violentos confrontos em frente ao Palácio de Miraflores, os ministros de
Chávez entraram na sede de governo. Às 22h11, o vice-presidente,
Diosdado Cabello, assumiu provisoriamente. Era o fim da aventura. Sem
apoio, Carmona renunciou e acabou preso. Às 2h15, Chávez entrou
triunfante no palácio e foi reempossado.
Baixo
clero – Apesar do retorno à institucionalidade, é inegável que a sorte
da democracia venezuelana, em última instância, foi decidida pela
caserna. O ministro da Defesa, José Vicente Rangel, disse que o golpe
contra Chávez fracassou porque seus líderes desconheciam o funcionamento
dos quartéis. Alguns analistas dividem a cúpula das Forças Armadas
entre facções minoritárias e antagônicas de opositores e defensores do
presidente e uma maioria de legalistas, que seria a principal
responsável pelo afastamento e posterior recondução de Chávez ao poder.
Mas outros acreditam que o movimento que garantiu a manutenção da
institucionalidade foi obra dos oficiais de média e baixa patentes –
majores, capitães e tenentes –, que obrigaram os generais a recuar.
“Houve um golpe de cúpula, mas a pressão de baixo foi muito forte e a
virada foi dada porque os oficiais não tinham apoio da tropa. Quando
falo da tropa, falo dos oficiais de média patente”, disse a ISTOÉ o
vice-almirante Armando Ferreira Vidigal, ex-diretor da Escola Naval e
atualmente assessor do Sindicato Nacional das Empresas de Navegação
Marítima (Syndarma). “Essa fratura nas Forças Armadas foi o fundamento
do contragolpe. A questão é saber como Chávez vai se comportar agora. Se
tiver cabeça, irá negociar com o Alto Comando.” O fato de ter dito que
pretende guardar a farda no baú de recordações parece indicar que Chávez
deverá fechar a caixa de Pandora que abriu pela primeira vez em 1992.
(Colaborou Hélio Contreiras)
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