Demóstenes Torres acha que o estupro de escravas era consentido |
O Supremo
Tribunal Federal votou, por unanimidade, a favor da constitucionalidade
das mal-chamadas "cotas raciais" para universidades públicas. Trata-se,
na verdade, de uma ação afirmativa específica para corrigir apenas um
aspecto da histórica exclusão da população negra do país.
Mesmo assim, a
direita tupiniquim fez das "cotas raciais" um cavalo de batalha,
investindo nos últimos anos todos os esforços e quadros na tentativa de
torpedear a iniciativa, na esteira do que fizeram os escravistas no
século XIX.
Abaixo,um texto esclarecedor do jornalista Leonardo Sakamoto, escrito antes da decisão do STF.
Abaixo,um texto esclarecedor do jornalista Leonardo Sakamoto, escrito antes da decisão do STF.
Demóstenes, o STF e as cotas raciais
Leonardo Sakamoto, em seu blog
"O Supremo Tribunal Federal deve julgar, nesta
quarta (25), se as cotas raciais para reserva de vagas em universidades
públicas são constitucionais. Uma das ações contrárias foi movida pelo DEM em
2009, pedindo sua suspensão na Universidade de Brasília.
Segundo o partido político, esse tipo de
reserva de vaga fere a dignidade e afeta o próprio combate à discriminação e ao
preconceito. Toda a vez que trato da questão da desigualdade social e do
preconceito que os negros e negras sofrem no Brasil (herança cotidianamente
reafirmada de um 13 de maio de 1888 que significou mais uma mudança na
metodologia de exploração da força de trabalho do que uma abolição de fato,
pois não garantiu as bases para a autonomia real dos ex-escravos e seus
descendentes) sou linchado. Até porque, como todos sabemos, o brasileiro não é
racista (suspiro...).
Bem, resumindo o que estou querendo dizer com
um discurso de descontente com as cotas que ouvi tempos atrás: "Vê se me
entende que eu vou explicar uma vez só. A política de cotas é perigosa e ruim
para os próprios negros, pois passarão a se sentir discriminados na sociedade –
fato que não ocorre hoje. Além disso, com as cotas, estará ameaçado o princípio
de que todos são iguais perante a lei, o que temos conseguido cumprir, apesar
das adversidades".
E relembrar é viver. Durante audiência no
Supremo Tribunal Federal para discutir o sistema de cotas em universidades
públicas em março de 2010, o senador Demóstenes Torres (então pertencente ao
DEM-GO) usou da palavra para destilar todo o seu profundo conhecimento sobre a
história do Brasil. Quem ouviu seu discurso saiu com a impressão de que
aprendeu várias coisas novas. Que os africanos eram os principais responsáveis
pelo tráfico transatlântico de escravos. Que escravas negras não foram
violentadas pelos patrões brancos, afinal de contas "isso se deu de forma
muito mais consensual" o que "levou o Brasil a ter hoje essa
magnífica configuração social" de hoje. Que no dia seguinte à sua
libertação, os escravos "eram cidadãos como outro qualquer, com todos os
direitos políticos e o mesmo grau de elegibilidade" – mesmo sem nenhuma
política de inserção aplicada. Com tudo isso, o nobre senador deu a entender
que os negros foram os reais culpados pela escravidão no Brasil. E, a partir
disso, compreende-se que são os culpados por sua situação econômica hoje e
qualquer forma de discriminação contra eles.
A posição do senador é compreensível, se
considerarmos que o discurso feito não foi um ataque à reserva de vagas para
negros e afrodescendentes e sim uma defesa da elite política e econômica que
controlou a escravidão no país e que, com algumas mudanças e adaptações,
desembocou em setores do seu próprio partido. Em meados do século 19, com o fim
do tráfico transatlântico de escravos, a propriedade legal sob seres humanos
estava com os dias contados. Em questão de anos, centenas de milhares de
pessoas estariam livres para ocupar terras virgens – que o país tinha de sobra
– e produzir para si próprios em um sistema possivelmente de campesinato. Quem
trabalharia para as fazendas? Como garantir mão-de-obra após a abolição?
Vislumbrando que, mantida a estrutura
fundiária do país, o final da escravidão poderia representar um colapso dos grandes
produtores rurais, o governo brasileiro criou meios para garantir que poucos
mantivessem acesso aos meios de produção. A Lei de Terras foi aprovada poucas
semanas após a extinção do tráfico de escravos, em 1850, e criou mecanismos
para a regularização fundiária. As terras devolutas passaram para as mãos do
Estado, que passaria a vendê-las e não doá-las como era feito até então. O
custo da terra começou a existir, mas não era significativo para os então
fazendeiros, que dispunham de recursos para a ampliação de seus domínios.
Porém, era o suficiente para deixar ex-escravos e pobres de fora do processo
legal. Ou seja, mantinha a força de trabalho à disposição do serviço de quem
tinha dinheiro e poder.
Para além dos efeitos da Lei Áurea, que esta
prestes a completar 124 anos em maio, trabalhadores brasileiros ainda são
subdivididos em classes.
Ou castas. O homem branco ganha mais do que o homem negro
pela mesma função, seja pelas diferenças de oportunidades que os dois tiveram
acesso, seja por puro preconceito. Se compararmos então com as mulheres negras,
a sensação de vergonha de ser brasileiro aflora de vez. Mudaram-se os rótulos,
ficaram as garrafas. O Brasil não foi capaz de garantir que os libertos fossem
tratados com o respeito que seres humanos e cidadãos mereciam, no campo ou na
cidade. Herança maldita disseminada na sociedade. E alimentada por discursos
como o de Demóstenes Torres.
Ou pela falta de políticas afirmativas. Antes
de tratar todos com igualdade, como pedem desesperadoramente alguns, é preciso
tratar os desiguais de forma desigual através de ações afirmativas. Só assim,
poderemos sonhar – um dia – em que negros e brancos, homens e mulheres, não se
sintam como se tivessem vindo com a roupa errada para a festa."
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