No momento em que o criminoso de massa e assassino psicopata Jorge Rafael Videla admite que o regime que ele dirigiu na Argentina foi responsável por sete mil ou oito mil mortos e que este era o preço a pagar para acabar com a "subversão", vem à tona essa maravilhosa história do diplomata italiano que lutou para salvar perseguidos da ditadura argentina, com revelações sobre a Operação Condor, a cumplicidade da diplomacia brasileira e do Vaticano com o regime genocida de Buenos Aires. Essa entrevista dele foi reproduzida pela Carta Maior:
O diplomata italiano Enrico Calamai |
O 'Schindler' italiano que salvou centenas de vidas na Argentina
O
diplomata italiano Enrico Calamai foi um herói silencioso que atuou no
Consulado em Buenos Aires durante a ditadura, quando arriscou sua vida e
sua carreira para facilitar a fuga de centenas de dissidentes políticos
e partidários que pegaram em armas contra o experimento neonazista dos
generais argentinos. Em conversa com a Carta Maior, em Roma, Calamai
fala sobre a Operação Condor, sobre o envolvimento de diplomatas e da
ditadura brasileira em assassinatos e sobre a cumplicidade do Vaticano
com a ditadura argentina.
Darío Pignotti - Especial para a Carta Maior
Roma
- Se a Itália fosse uma Meca do cinema político como o era nos anos 60 e
70, seguramente os estúdios romanos de Cinecittá teriam filmado algo
parecido à Lista de Schindler, aquela produção de Hollywood sobre um
magnata alemão que resgatou cerca de mil judeus condenados a morrer em
Auschwitz. O protagonista do filme que nunca se realizou seria o
diplomata italiano Enrico Calamai, um herói silencioso que atuou no
Consulado em Buenos Aires durante a ditadura, quando arriscou sua vida e
sua carreira para facilitar a fuga de centenas de dissidentes políticos
e partidários que pegaram em armas contra o experimento neonazista dos
generais argentinos.
"Nunca
me detive a contar as pessoas que passaram pelo Consulado. Em um
programa da RAI (TV italiana) disseram que foram mais de 400,
sinceramente não sei se esse número é correto, não sei quantos receberam
nossa ajuda para poder sair com vida da Argentina".
A
biografia de Calamai é a de um diplomata incomum no outono portenho de
1976 quando a chegada ao poder do general Videla era bem acolhida pela
maioria das embaixadas ocidentais e comemorada secretamente pela do
Brasil, como consta na intensa comunicação gerada pelo então embaixador
João Batista Pinheiro.
DESAFIANDO A OPERAÇÃO CONDOR
Videla e Pinochet: parceiros |
"Nós
sabíamos que a Operação Condor estava atuando, ainda não a conhecíamos
por esse nome, mas tínhamos notícias de que os militares brasileiros e
argentinos estavam articulados para deter quem fugia da matança em
Buenos Aires, por isso decidi viajar com dois ítalo-argentinos, Piero
Carmelutti e Santiago Camarda, até o Rio de Janeiro. Era arriscado que
fossem sozinhos. Foi no carnaval de 1977".
“Estes
rapazes estiveram um tempo ocultos no Consulado, um deles tinha uma
destreza artesanal para falsificar documentos e confeccionou uns que de
autênticos tinham apenas as fotos”.
“Fez
isso com meu auxílio, utilizando alguns carimbos que lhe facilitei, era
um método não formal de fazer documentação para sair do país, não
tínhamos apoio institucional, fizemos tudo às costas da Embaixada, que
não me apoiava nisto”.
“Também
não obtive apoio de um funcionário da Alitalia a quem propus que
fizesse vista grossa e nos desse passagens diretas até Roma, o que ele
recusou, escandalizando-se. Finalmente conseguimos as passagens diretas,
graças ao representante da Varig na Argentina, um ítalo-brasileiro
robusto e cordial".
"Nossa
premissa era evitar que fossem interrogados no Rio, porque ali
possivelmente havia gente do aparato de inteligência militar, e minha
função era estar junto a eles para fazer valer minha condição de
diplomata denunciando um eventual sequestro, como ocorreria em 1980 com o
ítalo-argentino Domingo Campiglia, capturado precisamente no Rio de
Janeiro" conta Calamai, com o rigor próprio de um historiador.
"Eles
não podiam permanecer em Buenos Aires, mas por sua vez tinham que
atravessar o cerco da Operação Condor no Rio, a única forma para que
chegassem com vida à Itália".
A
resistência à ditadura havia sido fraturada militarmente em 1977, ano
de intenso intercâmbio entre os serviços de inteligência dos ditadores
Ernesto Geisel e Jorge Videla.
Documentos
a que Carta Maior teve acesso, datados daquele ano, confirmam a
prioridade dada por Brasília à localização e detenção de "elementos
Montoneros e do ERP (Exército Revolucionário do Povo)", para serem
entregues à Buenos Aires.
Os
aparelhos repressivos trabalhavam em notável sintonia. Tanto que as
agências de inteligência brasileiras recebiam informações sobre as
atividades da resistência argentina na Itália.
Dentro
da documentação até agora secreta, obtida por Carta Maior, consta um
dossiê do Estado Maior do Exército brasileiro, originado na Itália em
junho de 1978, intitulado como “Movimento Peronista Montonero no
exterior, Acionar, Contatos, Conexões com Grupos Terroristas,
Antecedentes”.
CONSPIRAÇÃO DIPLOMATICA
As
centenas de argentinos que escaparam do genocídio graças ao trabalho de
Calamai não lhe valeram muito para obter uma promoção em sua carreira
diplomática, dado que após haver trabalhado cinco anos na Argentina, um
destino considerado de relativa importância, foi enviado a outro
considerado irrelevante: o Nepal.
Diferente
foi a sorte do embaixador brasileiro João Batista Pinheiro que, após
seus bons ofícios diante da Junta Militar portenha, foi promovido a
chefe da missão diplomática em Washington.
Pouco
depois da derrubada do governo civil argentino, Pinheiro trabalhou para
que Geisel enviasse, em abril de 1977, um representante a Buenos Aires,
um gesto crucial para Videla, que temia sofrer o isolamento diplomático
do qual padecia seu colega chileno Augusto Pinochet.
"Até
agora não se estudou a fundo como atuaram os serviços diplomáticos em
geral frente à ditadura", afirma Calamai durante a conversa com a Carta
Maior em Roma.
E
amplia: "não digo só pela Itália, me refiro à maioria dos países
ocidentais, que foram completamente omissos ante as violações dos
direitos humanos na Argentina".
Como
nos pactos mafiosos, o grosso dos diplomáticos instalados em Buenos
Aires, salvo os da embaixada do México, onde o ex-presidente democrático
Héctor Cámpora recebeu refúgio durante anos, optou por omitir-se.
"Direta
ou indiretamente, as principais embaixadas, inclusive aqui as da
Itália, e acho lógico que também a do Brasil, embora não tenho
informação concreta, foram informadas de que viria o golpe de Estado".
"Estes
avisos sobre a eminente derrubada do governo civil eram também uma
forma de advertir que não aceitariam que as embaixadas recebessem
refugiados, como havia feito nossa embaixada e outras depois do golpe do
Chile. E quase todos os países que receberam o aviso dos militares
argentinos, pelo visto, entenderam o recado e o aceitaram".
"Agora,
com o passar do tempo, compreendo que em torno da Operação Condor havia
uma colaboração estreita das embaixadas e dos militares argentinos, e
das embaixadas e seus próprios agregados militares. A diplomacia é algo
muito próximo ao poder, e o foi durante as ditaduras, os diplomatas
sabem que se se opuserem ao poder serão ou marginalizados, ou
eliminados. Nessa época isto era um risco real".
SANTA CUMPLICIDADE
Antes
da entrevista, Calamai nos mostra o Antico Café do Brasile, a poucos
metros de sua casa: "antes de ser papa, João Paulo II, quando era
seminarista, vinha habitualmente a este café, é um lugar simples, como
podem ver".
Videla sempre manteve boas relações com a Igreja |
As
exéquias de João Paulo I, antecessor do papa polaco que frequentava o
bairro de Calamai, foram um pretexto para estreitar as relações entre o
Vaticano e Videla, que foi um dos chefes de Estado convidados. As
gestões para a viagem de Videla e seu encontro com o então primeiro
ministro italiano, foram realizadas pela loja maçônica Propaganda Due
(P2), segundo consta em um livro lançado este ano na Universidade Roma
Três.
"A
loja P2 se movia como um poder oculto e gozava de uma notável
influência no serviço exterior italiano e no Vaticano, e um de seus
principais homens, Licio Gelli, mantinha boas relações na Igreja".
"O
Vaticano esteve muito próximo do regime argentino, não só porque
coincidia com seu anticomunismo, mas porque contribuía na decisão de
Roma de terminar com a teologia da liberação na América Latina. Dizia-se
que o núncio apostólico jogava tênis com o almirante (Emilio) Massera",
um dos membros da Junta, a quem correspondia o controle do Ministério
do Exterior argentino.
"Mas
também é preciso lembrar que os motivos ideológicos que levaram o
Vaticano a apoiar os militares eram tão importantes como os interesses
econômicos de empresas ligadas à Igreja que estavam radicadas na
Argentina".
Estas razões contribuem para explicar, segundo Calamai, porque o Estado do Vaticano omitiu-se durante anos em denunciar o genocídio argentino e negou ajuda aos familiares dos desaparecidos e prisioneiros.
"Existem
muitas coisas que escaparam da minha memória, mas o que lembro é que,
quando falava com diplomatas de outros países sobre as violações dos
direitos humanos, praticamente todo mundo dizia que ninguém ia à
Nunciatura porque não os recebiam".
(Tradução: Libório Junior)
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