Pablo-Picasso-Harlequin-and-Boy- |
Para
além do senso comum idiotizante, o texto abaixo propõe uma discussão
fundamental sobre liderança política, caciquismo e fortalecimento de
partidos políticos - pedra basilar da democracia:
Sobre caciques e
partidos
Cláudio Gonçalves Couto, no Valor Econômico
A
birra de Marta Suplicy, ausentando-se do ato de lançamento da candidatura de
Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo, enseja uma boa oportunidade para
discutir o papel das lideranças individuais nos partidos políticos.
Ela
serve para mostrar que o caciquismo é um fenômeno mais complexo do que sugerem
análises apressadas sobre a influência de certas lideranças na definição dos
rumos das organizações partidárias.
Quanto
a isto, um aspecto ganha relevo: enquanto alguns líderes criam sucessores,
atuando na produção ou reforço de novas lideranças (crucial para a
sobrevivência organizacional), outros embotam essa criação, contribuindo para a
esclerose organizacional.
O
problema é distinguir entre caciquismo – um tipo de liderança que subjuga a
organização à vontade pessoal inquestionável do líder – e influência.
Uma liderança influente no partido logra convencer os correligionários, sem contudo impor-lhes decisões inquestionáveis.
Assim, se a persuasão é requisito para a obtenção de anuência, não há caciquismo.
Trata-se
de diferença de grau, que ultrapassados certos limiares se converte em
distinção de natureza.
Há situações nas quais se migra, ao longo do tempo, de um estado para outro. Assim, caciques podem converter-se apenas em lideranças influentes, seja por que se debilitam ou ajustam a conduta, seja porque um reforço organizacional do partido lhes reduz o espaço para o arbítrio.
Inversamente, líderes influentes
podem, em certas conjunturas, tornar-se caciques; algo mais provável em
organizações partidárias frouxas ou enfraquecidas – o que não é a mesma coisa.
Caciques
são os que se colocam acima do partido. Para
existir, o cacique necessita do apoio de um subconjunto organizacional dentro
do partido: sua entourage, uma facção majoritária ou posições-chave na
burocracia.
Assim, enquanto o partido como um todo é fraco organizacionalmente,
esse subgrupo é relativamente forte, impondo a vontade de seu líder. Contudo,
há uma condição principal, decisiva distinguir o caciquismo da influência: o
cacique subordina os interesses da organização aos seus próprios; é o projeto
pessoal do cacique que sempre prevalece sobre o do partido – e mesmo sobre o de
sua claque.
Há
quem veja no patrocínio de Lula à candidatura de Fernando Haddad evidência de
caciquismo, demonstrando que o PT nada mais seria do que um partido sem vontade
própria, a reboque do grande líder.
Será mesmo? Isto não se coaduna com características notórias do partido: organização forte, disputa intensa entre facções, espaço para contestação seguido de alinhamento a decisões tomadas pelo conjunto. Na realidade, Lula é muitíssimo influente, mas não um cacique no sentido próprio do termo.
Será mesmo? Isto não se coaduna com características notórias do partido: organização forte, disputa intensa entre facções, espaço para contestação seguido de alinhamento a decisões tomadas pelo conjunto. Na realidade, Lula é muitíssimo influente, mas não um cacique no sentido próprio do termo.
E isto não só por méritos próprios dele, mas pelas
características do partido que construiu – que restringe o caciquismo.
No caso paulistano, antes mesmo de Marta desistir da candidatura, já enfrentava – além de Fernando Haddad – a oposição interna de antigos aliados, agora pré-candidatos, os deputados Jilmar Tatto e Carlos Zarattini.
Candidata duas
vezes derrotada à prefeitura, a senadora já não desfrutava da condição de
escolha óbvia da agremiação – como foi em 2008. A imposição de seu
nome – a despeito de outras postulações, de um clamor interno por renovação e
da grande rejeição aferida pelas pesquisas ¬- é que seria caciquismo.
Em tal contexto, o apoio de Lula à renovação operou mais como contrapeso à tentativa de caciquismo em nível local do que se mostrou ele próprio uma imposição inconteste.
Em tal contexto, o apoio de Lula à renovação operou mais como contrapeso à tentativa de caciquismo em nível local do que se mostrou ele próprio uma imposição inconteste.
Compare-se
com a autoimposição de José Serra no PSDB, contra Aécio Neves. Verificou-se no
ninho tucano uma estratégia de sufocamento da disputa interna pela interminável
postergação do embate, até que o ex-governador mineiro jogou a toalha,
considerando que não teria tempo hábil para se viabilizar.
A
solução pelo alto, dessa ardilosa vitória pelo cansaço, repetiu-se agora na
escolha da candidatura tucana à prefeitura paulistana.
Após meses alegando que não se candidataria, o que ensejou uma animada disputa entre quatro pré-candidatos (sugerindo renovação partidária) o ex-governador mudou de ideia, inscreveu-se na prévia após o prazo regulamentar, provocou a desistência de dois postulantes e prevaleceu. Serra obteve na prévia apenas pouco mais de 50% dos votos, num embate contra postulantes muito menos expressivos – tanto no que concerne à envergadura política quanto à história. Isto mostra o tamanho do desagrado que sua soberba causou na base tucana.
Após meses alegando que não se candidataria, o que ensejou uma animada disputa entre quatro pré-candidatos (sugerindo renovação partidária) o ex-governador mudou de ideia, inscreveu-se na prévia após o prazo regulamentar, provocou a desistência de dois postulantes e prevaleceu. Serra obteve na prévia apenas pouco mais de 50% dos votos, num embate contra postulantes muito menos expressivos – tanto no que concerne à envergadura política quanto à história. Isto mostra o tamanho do desagrado que sua soberba causou na base tucana.
Fosse
o PSDB dotado de maior densidade organizacional, os dois episódios da imposição
serrista deflagrariam uma crise interna – como a que deve se produzir no PT de
Recife neste ano. O caráter elitizado da agremiação e a baixa intensidade da
vida partidária (sobretudo se comparada à do PT) permitem que as manobras dos
caciques e seus embates permaneçam basicamente como um problema deles mesmos.
A
renovação, neste caso, ocorre apenas nas franjas da disputa política (como nas
eleições de deputado estadual e vereador), pelo ocaso das lideranças ou por
algum acidente; raramente por uma estratégia bem definida. Em São Paulo, a
oportunidade da renovação foi perdida; o risco da esclerose cresceu.
É
nisto que as atuações de Lula e Serra se distinguem como influência, no
primeiro caso, e caciquismo, no segundo. Enquanto o ex-presidente interveio no
processo de modo a promover uma renovação de lideranças e atuando segundo a
lógica da organização partidária, o ex-governador apenas fez prevalecer seu
projeto pessoal de poder, às expensas do partido, que tornou seu refém.
Isto
permanece, a despeito de quem venha ganhar ou perder as eleições de outubro.
Algo
que confunde a percepção de papéis tão distintos são os estilos muito diversos
de um e de outro. Enquanto Lula é um líder carismático e de estilo esfuziante,
Serra é um líder gerencial e de estilo soturno.
Intuitivamente, o senso comum
identifica o primeiro com o improviso e o personalismo, e o segundo com a
racionalidade e a institucionalidade. Uma análise mais cuidadosa revela
exatamente o oposto.
*Cientista político, professor da FGV-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário