A garota que provocou uma revolução na imprensa inglesa |
Milly Dowler, a garota que provocou uma revolução na mídia na Inglaterra, teria 23 anos hoje.
Em março de 2002, aos 13 anos, ela saiu de sua escola em Surrey, no sul da Inglaterra, para casa, no começo da tarde.
Por volta de 15 horas, ligou de seu celular para o pai, para avisar
que em meia hora chegaria em casa. Nunca chegou. Seis meses depois, em
meio a uma intensa comoção entre os ingleses, seu corpo foi encontrado
nu e em decomposição num matagal perto de sua casa.
Milly, que os que a conheceram descreveram unanimemente como uma
garota linda, vivaz, generosa e sonhadora, como costumam ser as meninas
de 13 anos amadas, fora abordada, estuprada e assassinada.
O caso foi desvendado depois de alguns meses, durante os quais a
sociedade inglesa ficou tocada, à espera de notícias sobre a menina
desaparecida. Em vão. A polícia acabou chegando, seis meses depois do
sumiço, a um assassino em série com fixação por jovens colegiais.
Ele foi acusado, julgado e condenado. Está na prisão, e dificilmente
vai recuperar a liberdade, dada a ameaça que representa. O assassino
teve dez filhos de cinco mulheres, e algumas delas disseram que ele
pedia que se vestissem de colegiais.
O golpe na mídia viria nove anos depois da morte de Milly, quando o
jornal The Guardian revelou que o tabloide News of the World, do grupo
Murdoch, invadira criminosamente a caixa postal do celular de Milly em
busca de novas informações sobre o caso, antes que seu corpo fosse
descoberto. A polícia cogitou inicialmente que a própria Milly mexera na
caixa postal, e isso deu esperanças à família – os pais e uma irmã um
pouco mais velha – de que ela estivesse viva.
Para que se tenha uma ideia da repercussão do furo do Guardian, na
mesma semana o NoW foi fechado por Murdoch. Era o jornal em circulação
mais velho no Reino Unido, com 168 anos de existência.
Numa tentativa de mitigar a revolta da opinião pública, Murdoch
publicou em todos os seus jornais um pedido de desculpas histórico,
talvez sincero, mas que não comoveu ninguém.
Ele deixou a sede de seu império de mídia em Nova York e se deslocou
para Londres para administrar a crise. Encontrou-se pessoalmente com os
pais de Milly, aos quais autorizou que fosse dada uma indenização
extrajudicial de 2 milhões de libras. Entregou, com clara relutância, a
cabeça de sua favorita, a ruiva Rebekah Brooks, então a Rainha dos
Tabloides, depois de passar por dois deles como editora, o NoW e o Sun.
Rebekah dirigia o NoW quando a caixa postal de Milly foi invadida.
Nada do que Murdoch fez aplacou a raiva da opinião pública. Sob
frenética pressão, o premiê David Cameron designou um juiz, Brian
Leveson, para liderar uma investigação independente sobre a mídia
britânica.
Passados dezesseis meses, ao longo dos quais Leveson sabatinou sob as
câmaras de televisão todos os personagens relevantes para a discussão
sobre a mídia, de Cameron a Murdoch, de Rebekah aos pais de Milly, foi
divulgado hoje o aguardadíssimo relato com as recomendações do juiz.
Alguns destaques de Leveson, extraídos de um relatório de 2 000 páginas:
1) Ele “rejeitou totalmente” a ideia, defendida pelas empresas de
mídia, de que excessos de jornalistas e publicações são “aberrações que
não refletem a cultura, a ética e as práticas da imprensa como um todo”.
2) Ele afirmou que parte da imprensa, ao agir como se não houvesse
“código nenhum”, teve um efeito “devastador” sobre a vida de pessoas
comuns apanhadas por tragédias. O sofrimento dessas pessoas foi
“ampliado consideravelmente pelo comportamento da imprensa para o qual,
muitas vezes, a melhor definição é ultrajante”.
3) A mídia vem dando, segundo Leveson, “absurda prioridade ao
sensacionalismo”, e num regime de “ imprudente desrespeito pela
precisão”.
4) Existe na imprensa, de acordo com Leveson, a tendência de
“diminuir ou desprezar” as reclamações de quem se considera vítima de
tratamento injusto. Algumas vezes, a imprensa parte para “ataques em
volume alto, de caráter extremamente pessoal, contra quem ousou
desafiá-la”.
A recomendação de Leveson é que seja criado um órgão regulador
independente para a mídia – independente da indústria, do governo e dos
políticos. É mais ou menos o que acontece na Dinamarca – um exemplo
amplamente citado nos últimos tempos, em que uma imprensa livre e
aguerrida é acompanhada por um órgão regulador independente cuja missão é
defender o interesse público.
Apresentado o relatório e feitas as sugestões, começa agora o debate
que dará, provavelmente, numa mídia bem melhor do que a que foi objeto
de avaliação do juiz Brian Leveson dez anos depois da morte da pequena
Milly.
Por paulo Nogueira no DCM
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