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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Exclusivo: o relato de um médico de Santa Maria que participou do socorro

O transtorno em Santa Maria
No fim da tarde do dia 30 de janeiro, liguei para o Dr. Jones Oliveira de Moraes. Ele havia deixado um comentário no post que eu escrevera no domingo sobre a tragédia de Santa Maria, contando que havia atendido as vitimas do incêndio. Nós entramos em contato com ele para fazer uma entrevista. Durante a conversa, ele tinha tanto a dizer, que mal pude interferir. Foi um desabafo de alguém que viu muito de perto tantas pessoas que estiveram a um passo da morte. Acabei optando por juntar as partes e transformar a entrevista num relato. Espero que este texto seja mais um pequeno foco de luz neste episódio.
  Dr. Jones
Drº Jones Oliveira de Moraes conta como foi cuidar dos sobreviventes da tragédia de Santa Maria.
O transtorno em Santa Maria

Foi uma noite normal para mim, de sábado para domingo. Queria acordar cedo pois teria muito a fazer no dia seguinte. Acordei às 7 horas da manhã.
Ao sair do quarto, vi meu filho com os olhos arregalados. Felipe, 20, é estudante de direito e estivera na Kiss na noite de sexta. Contou-me que levara dez minutos para sair de lá às 2 da manhã, sóbrio, sem tumulto e com a vista boa.
Mas hoje seu semblante era de susto. Estava sentado no computador e me disse: “Pai… a Kiss pegou fogo e um monte de gente morreu”. Eu sabia que ele jamais brincaria com isso, mas mesmo assim fui impelido a perguntar retoricamente se ele estava brincando.
A partir deste momento, apenas coloquei as lentes e segui para o hospital. Sou residente de cardiologia na UTI de dois deles, o Hospital Universitário, ligado à UFSM, e o Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo, o maior e mais antigo da cidade. Este último é mais próximo da minha casa, e eu estava ansioso para ver a situação que se criara, por isso optei por ir a ele.
O hospital estava caótico. Havia gente no chão, e a primeira coisa que me passou pela cabeça foi: “Nós precisamos levar estas pessoas para algum lugar onde  possamos improvisar uma UTI”. Após uma breve conversa com os colegas, decidimos utilizar a Unidade de Apoio que o hospital tem. Foi para lá que nós levamos os pacientes em estado mais grave.
A maioria deles sofria de asfixia e intoxicação pela fumaça. Pouca gente estava queimada de fato. O tratamento inicial, neste caso, é oxigênio – ele expulsa o monóxido de carbono. Conforme conseguíamos transporte e condições adequadas, enviávamos alguns pacientes para Porto Alegre.
No meio de toda a tristeza que nos rodeava, duas coisas me deixaram satisfeito: primeiro, o senso cívico do corpo médico, da enfermagem e da equipe do hospital. Os que estavam de folga foram trabalhar, os que fizeram plantão na madrugada seguiram trabalhando. Qualquer coisa que se precisasse, havia três pessoas dispostas a buscar.
Outra foi o apoio da Força Aérea. Nós não tínhamos equipamento suficiente para ventilação mecânica – em certo momento, havia 50 pessoas precisando do aparelho – eles trouxeram de Porto Alegre o suficiente para atender a todos.
O hospital não perdeu nenhum paciente. Ao voltar para casa, depois de 12 horas de trabalho intenso, tanto mental quanto físico, me senti satisfeito de alguma forma. Tive a impressão que ajudei, que fiz meu melhor.
No dia seguinte, notei que estava apenas anestesiado pela intensidade do momento. Eu estava muito triste. Perdi duas amigas – Marina, uma estudante que trabalhou aqui na clinica, e Daniele, uma médica que havia se mudado de Santa Maria e que, por ironia, passava o fim de semana na cidade com o namorado.
Tenho duas amigas sobreviventes também. Luane está sendo encaminhada para ter ajuda psicológica e psiquiátrica; Janaína ainda está sob ventilação mecânica, internada no hospital em que trabalho – mas não cuido dela pela ligação pessoal.
A cidade de Santa Maria inteira está tomada por uma espécie de ressaca que a tragédia trouxe. É uma cidade pequena e todo mundo conhecia alguém que foi vítima do incêndio. Até um viaduto, chamado Garganta do Diabo, onde às vezes acontecem suicídios, foi interditado.
No meio da tristeza, paira no ar uma busca por justiça. Na minha visão, há muitos culpados – o projeto da casa, a ganância do proprietário, os seguranças sem treinamento, a falta de uma brigada de incêndio, a burrice da banda, e, claro, o poder público que permitiu o funcionamento da Kiss.
Meu filho poderia ter estado lá no dia da tragédia. Procuro não pensar nisso, porque as fatalidades podem estar em qualquer lugar. Ontem, atendi uma mãe que perdeu a filha. É uma velha paciente cardíaca. Ela disse: “Sei que preciso continuar com a minha vida, mas não sei como”. Nós choramos juntos.

Texto de Emir Ruivo no DCM

2 comentários:

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