Há livros que é uma tristeza fechar, tamanha a beleza e a sabedoria do conteúdo
Há livros que é uma alegria fechar, lidas ou não todas as páginas. Não lidas, de preferência.
São os livros ruins. Ou desnecessários. Você entra numa livraria como a Cultura e vê aquelas pilhas de livros. Alguns podem ficar impressionados. A mim, o que ocorre é: Deus, quantos livros inúteis há nesta imensidão de papel, nesta orgia literária.
São os livros ruins. Ou desnecessários. Você entra numa livraria como a Cultura e vê aquelas pilhas de livros. Alguns podem ficar impressionados. A mim, o que ocorre é: Deus, quantos livros inúteis há nesta imensidão de papel, nesta orgia literária.
Quantas árvores derrubadas.
Há também livros que é uma tristeza fechar, tamanha a beleza e a
sabedoria do conteúdo. Tirá-los de seu criado mudo, uma vez lidos, é
como despedir-se de alguém querido numa estação de trem. Dói. Você acaba
de lê-los e sabe que jamais será o mesmo. Alguma coisa em você mudou, e
para melhor. São os livros necessários, em oposição aos inúteis.
Alguns são imprescindíveis.
Os Maias, por exemplo. Aquele final. Os dois grandes amigos, Carlos e
Ega, vagando pelas ruas tristes de Lisboa, anos depois da ruína de seus
sonhos de jovens. “Falhamos a vida”, diz um ao outro. “Mas a vida que
planejamos nunca é a que ocorre”, diz o outro. Estou escrevendo de
memória. Sem precisão. O sentido é este, de toda forma.
Nunca fui o mesmo depois de Os Maias, para ficar num caso. Entendi,
estoicamente resignado, que também eu, como Carlos Ega, ‘falhara a
vida’. Onde os romances que aos vinte anos sonhara escrever?
Lembro uma amiga que me disse que estava se despedindo com tristeza
de um livro que para ela era indispensável. Travessuras da Menina Má, de
Vargas Llosa. Vargas Llosa é um romancista brilhante. O maior entre os
autores latino-americanos contemporâneos.“Não quero terminar”, disse
ela. “Estou economizando as últimas páginas. Como a menina má fica no
final?”
Os melhores personagens da literatura raramente terminam bem.
Sobretudo as mulheres. Penso aqui comigo por que as feministas não se
insurgiram contra a crueldade imposta às mulheres na literatura. Maria
Eduarda, de Os Maias, por exemplo. Terminou se apaixonando, por
acidente, pelo irmão do qual fora afastada menina. Ainda bebê. Perdera o
contato por completo e não sabia que aquele homem que a fascinou
imediatamente era seu irmão há tantos anos afastado. Capitu traiu
Bentinho, pelo menos segundo a versão dele mesmo, o narrador, e foi
morrer solitária e amargurada no exílio europeu. Ana Karenina, casada
dentro da melhor sociedade russa, sucumbiu à sedução de Vronski e
terminou se atirando sob as rodas de um trem. Madame Bovary, atormentada
pelo adultério, se matou.
Todas se deram mal. Por que a menina má, provavelmente a melhor personagem feminina criada pelo gênio de Llosa, se daria bem?
Quem quiser ler o livro, e se incomodar com informações sobre o final, é melhor que pare aqui.
Bem, a menina má, uma maravilhosa peruana cosmopolita que tem atitude
de dona do mundo, uma fêmea diante da qual se prosternam machos de
todas as partes em busca de seus favores sexuais, tem um final ruim. Um
câncer a devasta. Aqueles seios que fariam um bispo convicto hesitar
diante de sua escolha pelo sacerdócio foram massacrados pelo câncer.
Philip Roth, também um escritor necessário, também acabou com o seio de
uma jovem deslumbrante num romance que recentemente se transformou num
filme, Fatal. O filme fica na estranha faixa entre o que não é nem útil e
nem inútil, ao contrário do livro de Roth.
Um homem tivera pela menina má de Llosa um amor incondicional. O
menino bom. Sempre a acolhera, sempre a aceitara. A paixão com a qual
toda mulher sonha, mas que infelizmente só parece existir na ficção. Na
vida concreta, homens – e mulheres – têm baixa tolerância em relação a
seus amores. Num livro de Le Carré, outro romancista necessário, um
personagem diz que as mulheres que lhe deram um tapa jamais tiveram a
chance de dar um segundo.
A menina má, perto da morte, diz a seu apaixonado fiel que, depois de
tanto frustrá-lo, lhe deu um grande presente. O menino bom sempre
tivera preguiça de escrever um romance. Agora tinha material. “Eu te dei
uma boa história para seu romance”, diz ela. “Um amor que se eternize
nas páginas de um livro.”
Que mais uma mulher poderia desejar?
Paulo Nogueira no DCM
Nenhum comentário:
Postar um comentário