"Você sabe perfeitamente que no
ponto culminante de uma crise procedemos sempre por impulso, ao contrário do previsível, praticando a barbaridade mais inesperada, e pode dizer-se que, precisamente nesse momento, se verificara uma saturação de realidade; não lhe parece? A realidade precipita-se, mostra-se com toda sua força e, então, a nossa única maneira de enfrentá-la consiste em renunciar à dialética, essa é a hora em que damos um tiro em alguém, em que pulamos do navio, em que tomamos um tubo de Gardenal [...], em que libertamos o cachorro de sua corrente, em que fazemos qualquer coisa que nos ocorra. A razão só nos serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea. Todavia, essas crises são como demonstrações metafisicas, meu caro, um estado que, talvez, se não tivéssemos seguido pelo caminho da razão, seria o estado natural e corrente do picantropus erectus.
[...]
- E essas crises que a maioria das pessoas considera como escandalosas, como absurdas, eu pessoalmente tenho a impressão de que servem para mostrar o verdadeiro absurdo de um mundo ordenado e calmo, como um quarto onde diversos caras tomam café às duas da manhã, sem que, realmente, nada disso tenha o menor sentido [...]
O
absurdo é que não pareça um absurdo [...] O absurdo é você sair de
manhã e encontrar a garrafa de leite na porta de seu apartamento,
ficando muito tranquilo porque ontem aconteceu o mesmo e amanhã voltará a
acontecer. É este estancamento, este assim seja, esta
suspeitosa carência de exceções. Eu não sei, meu amigo, mas seria preciso procurar outro caminho."
Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha
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