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segunda-feira, 19 de maio de 2014

AS MÃOS SUJAS DO LIVRE MERCADO



Stálin e o Gulag soviético
"Normalmente, os sistemas de ideias que exigem a eliminação por inteiro de culturas e povos, com o intuito de instaurar uma visão purificada do mundo, são aqueles baseados em religiosidade extrema e teorias raciais. 

Mas, desde o colapso da União Soviética, tem ocorrido um acerto de contas coletivas com os grandes crimes cometidos em nome do comunismo. Os arquivos do sistema soviético de informação foram abertos aos pesquisadores, que contaram os mortos - por fomes forçadas, campos de concentração ou assassinato. 

[...]

Argentina, anos 1970
Mas o que dizer da cruzada contemporânea para libertar os mercados mundiais? Os golpes, guerras e chacinas perpetradas para instalar e manter regimes favoráveis aos interesses das corporações nunca foram tratados como crimes capitalistas. Ao contrário, têm sido retratados como zelos excessivos de certos ditadores, nas frentes de batalha da Guerra Fria e da Guerra ao Terror atual. Quando os oponentes mais aguerridos do modelo das corporações são sistematicamente eliminados, como na Argentina na década de 1970 ou no Iraque hoje, essa eliminação é explicada como parte da guerra suja contra o comunismo ou o terrorismo - jamais como uma batalha pelo avanço do capitalismo puro. 

[...]
 
Pinochet e seu guru, Milton Friedman
Keynes propôs (...) esse tipo de economia mista e regulada após a Grande Depressão, uma revolução nas políticas públicas que criou o New Deal e gerou transformações similares em todo o mundo. Foi exatamente contra esse sistema de conciliação, controle e equilíbrio que a contra-revolução de [Milton] Friedman foi deslanchada, buscando desmantalá-la em todos os países. Desse ponto de vista, a versão do capitalismo idealizada pela Escola de Chicago possui algo em comum com outras ideologias perigosas: o desejo declarado por uma pureza inatingível, por um espaço vazio onde construir uma sociedade-modelo constantemente reelaborada.

O anseio pelos poderes divinos de criação total é a razão pela qual os ideólogos do livre mercado são tão apegados à crises e desastres. Uma realidade não-apocalíptica simplesmente não abarca suas ambiações. O que animou a contra-revolução de Friedman, por 35 anos, foi sua atração por uma espécie de liberdade e de oportunidade que só se apresenta em situações de mudanças calamitosas - quando as pessoas, com seus hábitos arraigados e demandas insistentes, são tiradas do caminho -, momento em que a democracia parece praticamente impossível. 

Aqueles que acreditam na doutrina do choque estão convencidos de que somente uma grande ruptura - uma inundação, uma guerra, um ataque terrorista - pode criar o tipo de tela branca, grande e limpa que eles tanto procuram. É nesses momentos maleáveis, quando estamos psicologicamente fragilizados e fisicamente esgotados, que esses artistas do real esfregam as mãos e iniciam seu trabalho de refazer o mundo.

[...]

Algumas das violações mais infames dos direitos humanos de nossa era, que tenderam a ser encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocráticos, foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o público, ou ativamente empregadas a fim de preparar o terreno para a introdução das 'reformas' radicais de livre mercado. Na Argentina da década de 1970, o 'desaparecimento' de trinta mil pessoas sob o governo da junta militar, muitas delas ativistas de esquerda, fez parte da imposição ao país das políticas da Escola de Chicago, do mesmo modo que o pavor foi parceiro para um tipo similar de metamorfose econômica no Chile.


Yeltsin bombardeia o Parlamento em 1993
 Na China, em 1989, foram o choque do massacre da praça Tiananmen e as prisões subsequentes de milhares de manifestantes que facilitaram ao Partido Comunista a conversão de amplas partes do país em uma grande zona de exportação, suprida com uma força de trabalho excessivamente aterrorizada para reivindicar seus direitos. Na Rússia, em 1993, foi a decisão de Boris Yeltsin de enviar os tanques para bombardear o Parlamento e prender os líderes da oposição que abriu caminho para a escalada de privatizações e criou os notórios oligarcas do país." 

 Naomi Klein, A Doutrina do Choque - A ascensão do capitalismo de desastre   



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