Em campanha pelo insucesso da Copa de
2014 e pela derrota do PT nas eleições de outubro, o colunista Arnaldo
Jabor agora se coloca como o anti-Nelson Rodrigues; diz que o Brasil
deixou de ser a pátria de chuteiras para se transformar nas "chuteiras
sem pátria"; artigo faz parte do esforço para que os brasileiros se
sintam "envergonhados" durante o torneio, como disse o atacante Ronaldo;
Jabor se inspira no dramaturgo, mas o que mais Nelson Rodrigues
criticava era o complexo de vira-latas dos brasileiros; "somos hoje uma
nação de humilhados e ofendidos", disse Jabor; alguém escutou um au-au?
247 - Arnaldo
Jabor, em campanha aberta pelo insucesso da Copa de 2014 e pela derrota
do PT nas eleições de outubro, agora se coloca como uma espécie de
anti-Nelson Rodrigues. Se o dramaturgo via o Brasil como a "pátria de
chuteiras", Jabor enxerga "chuteiras sem pátria". Se Jabor criticava o
"complexo de vira-latas" do brasileiro, Jabor nos vê como um bando de
fracassados. "Somos hoje uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da
chuva de mentiras políticas, violência e crimes sem punição.
Descobrimos que o País é dominado por ladrões de galinha, por batedores
de carteira e traficantes", diz ele.
Para ele, não teremos uma
Copa do Mundo, mas sim a "Copa do medo", sobre a qual paira o risco de
um vexame planetário. "O mais claro sinal de que vivemos uma mutação
histórica é esta Copa do Medo. Há o suspense de saber se haverá um
vexame internacional que já nos ameaça. Será péssimo para tudo, para
economia, transações políticas, se ficar visível com clareza sinistra
nossa incompetência endêmica, secular", diz Jabor.
Na verdade, para as pretensões de Jabor, não será tão ruim assim. Ele torce por esse vexame. Leia, abaixo, seu artigo:
A Copa da esperança e a Copa do medo
Arnaldo Jabor
Meu avô chegou em casa
chorando. As ruas estavam desertas e o silêncio era total. Isso, no dia
16 de julho de 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai. Lembro de
meu avô dizendo que só se ouviam os sapatos. Os chinelos, até pés
descalços desciam as rampas do Maracanã e, vez por outra, alguém
soluçava. Eu era pequeno e não entendia bem aquele desespero que
excitava a criançada - ver adultos chorando! Muitos anos depois o Nelson
Rodrigues me disse a mesma coisa: só os sapatos falavam. Mas por que
isso aconteceu?
A guerra tinha acabado, a
Fifa nos escolhera para a sede da Copa porque a Europa estava ainda
muito combalida pela guerra. Tivemos de construir o Maracanã, que o
prefeito Mendes de Morais inaugurou como se fosse o símbolo de um Brasil
novo - o maior estádio do mundo. Getúlio Vargas já era candidato a
presidente democraticamente eleito e tínhamos a sensação que deixaríamos
de ser um país de vira-latas para um presente que nos apontava o
futuro. O governo Dutra tinha gasto a maior parte de nossas altas
reservas do pós-guerra em importações americanas. Inteiramente submisso
ao desejo dos gringos, nos enchemos de produtos inúteis: meias de nylon,
chicletes de bola, bolinhas de gude coloridas com que jogávamos, ioiôs,
carros importados, o novo clima do cinema americano, dos musicais da
Metro, o sonho de alegria e orgulho que pedimos emprestado aos Estados
Unidos. Com ingênua esperança de modernidade, achávamos que nossa vez
tinha chegado. E fomos ao jogo para ver nossa independência. Tínhamos
certeza absoluta da vitória. Os jornais já fotografavam os jogadores do
"scratch" como campeões invencíveis. Tínhamos ganho tudo. Apenas um
empate com a Suíça, sete a um contra a Suécia, seis a um contra a
"fúria" espanhola. O estádio estava cheio de ex-vira-latas, de
ex-perdedores; como diria Nelson Rodrigues, todos éramos patrióticos
granadeiros bigodudos e dragões da independência, Napoleões antes de
Waterloo. Não queríamos apena uma vitória, mas a salvação. Só a taça
aplacaria nossa impotência diante da eterna zona brasileira. Queríamos
berrar ao mundo: "Viram? Nós somos maravilhosos!".
Precisando de somente um
empate, a seleção brasileira abriu o marcador com Friaça aos dois
minutos do segundo tempo, mas o Uruguai conseguiu a virada com gols de
Schiaffino e Ghiggia. Claro que foi um terrível lance de azar, mas, para
nós, o mundo acabou. No estádio mudo, sentia-se a respiração custosa de
200 mil pessoas. Ouvia-se a dor. Foi uma mutação no País.
Não estávamos preparados
para perder! Essa era a verdade. E a certeza onipotente leva à desgraça.
Traz a morte súbita, a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha. Só o pavor
ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para o triunfo, só o
pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as vitórias esmagadoras,
pois nenhum time vence sem a medalhinha no pescoço e sem ave-marias.
Isso é o óbvio, mas foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado, ficamos
expostos ao sobrenatural, ao mistério do destino. Um amigo meu, já
falecido, Paulo Perdigão, escreveu um livro essencial para entender o
País naquela época - A Anatomia de Uma Derrota, em que ele cria uma
frase que nos explicava em 50 e que nos explica até hoje: o Brasil seria
outro país se tivéssemos ganho "aquela" Copa, "naquele" ano. "Talvez
não tivesse havido a morte de Getúlio nem a ditadura militar. Foi uma
derrota atribuída ao atraso do País e que reavivou o tradicional
pessimismo da ideologia nacional: éramos inferiores por um destino
ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a angústia de sentir que a
nação tinha morrido no gramado do Maracanã..." E aí ele escreveu a
frase rasgada de dor: "Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!".
Esta sentença nos persegue até hoje. Talvez nunca mais tenhamos o peito cheio de fé como naquele ano remoto.
Lá, sonhávamos com um
futuro para o País. Agora, tentávamos limpar nosso presente. Somos hoje
uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de mentiras
políticas, violência e crimes sem punição. Descobrimos que o País é
dominado por ladrões de galinha, por batedores de carteira e
traficantes. E mais grave: a solidariedade natural, quase 'instintiva',
das pessoas está acabando. Já há uma grande violência do povo contra si
mesmo. Garotos decapitam outros numa prisão, ônibus são queimados por
nada, meninas em fogo, presos massacrados, crianças assassinadas por
pais e mães, uma revolta sem rumo, um rancor geral contra tudo. Repito:
estamos vivendo uma mutação histórica.
Há uma africanização de
nossa desgraça, com o perigo de ser irreversível. E não era assim -
sempre vivemos o suspense e a esperança de que algo ia mudar para
melhor.
Isso parece ter acabado. É
possível que tenhamos caído de um 'terceiro mundo' para um "quarto
mundo". O quarto mundo é a paralisação das possibilidades. Quem vai
resolver o drama brasileiro? As informações criam apenas perplexidade e
medo, mas como agir? Não há uma ideologia que dê conta do recado.
O mais claro sinal de que
vivemos uma mutação histórica é esta Copa do Medo. Há o suspense de
saber se haverá um vexame internacional que já nos ameaça. Será péssimo
para tudo, para economia, transações políticas, se ficar visível com
clareza sinistra nossa incompetência endêmica, secular. Nunca pensei em
ver isso. O amor pelo futebol parecia-me indestrutível. O governo
pensava assim também, com o luxo dos gastos para o grande circo. E as
placas nas ruas se sucedem: "Abaixo a Copa!". "Queremos uma vida padrão
Fifa!"
Como vão jogar nossos
craques? Com que cabeça? Será possível ganharmos com este baixo astral,
com a gritaria de manifestantes invadindo os estádios? Haverá espírito
esportivo que apague essa tristeza?
Antes, nas copas do mundo, éramos a pátria de chuteiras. Hoje, somos chuteiras sem pátria.
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