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George Steiner |
"É razoável supor que toda alta civilização desenvolve tensões implosivas e impulsos à autodestruição? Será que uma cultura complexa - agregado tão delicadamente equilibrado, ao mesmo tempo dinâmico e confinado - tende, necessariamente, a um estado de instabilidade e, por fim, de conflagração? O modelo seria o de uma estrela que, após alcançar uma massa crítica, uma equação crítica de trocas de energia entre a estrutura interna e a superfície radiante, implode, inflamando-se, no momento da destruição, com o mesmo brilho visível que associamos às grandes culturas em sua fase terminal.
Seria a fenomenologia do ennui e de ujm anseio pela destruição violenta uma constante na história das formas sociais e intelectuais, após essas terem atravessado certo limitar de complicação?
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Sigmund Freud |
A noção de um desejo de morte, que opera tanto no indivíduo quanto na consciência coletiva, é, como o próprio Freud enfatizou, um tropo filosófico. Mas a sugestão tem uma força extraordinária, e a descrição que Freud faz das tensões que as maneiras civilizadas impõem aos instintos humanos centrais e não realizados continua válida. Assim como as insinuações, abundantes na literatura psicanalítica (que é, por si mesma, pós-darwiniana), de que há nas interrelações humanas uma inelutável pulsão à guerra, a uma afirmação suprema da identidade à custa da destruição mútua.
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Edgar Allan Poe |
Por volta de 1900, havia uma propensão terrível, uma sede mesmo, por aquilo que Yeats viria a chamar 'maré turva de sangue'. Exteriormente srena e brilhante, a belle époque estava demasiado madura, de um modo ameaçador. Sob a superfície do jardim, compulsões anárquicas estavam chegando a um ponto crítico. Notam-se imagens proféticas do perigo subterrâneo, de influências destrutivas prontas a levantar-se dos esgotos e dos porões que atormentavam a imaginação literária desde o tempo de Poe e do Les misérables [...]. A corrida armamentista e a crescente febre do nacionalismo europeu eram, acho, apenas os sintomas exteriores desse mal-estar intrínseco. O intelecto e o sentimento foram, literalmente, fascinados pela perspectiva de um fogo purificador.
Trincheiras, Primeira Guerra Mundial |
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Como já vimos, as antevisões de guerra e as fantasias de destruição universal eram abundantes. No entanto [...], ninguém previu a escala da carnificina. [...] Historiadores diplomáticos e militares debate até hoje se houve ou não algum aterrador erro de cálculo. Que transformou em massacre a guerra profissional e essencialmente limitada? Diferentes fatores intervieram: a mortífera consolidação das trincheiras, o poder de fogo, a enorme extensão coberta pelas frentes ocidental e oriental. mas foi também, suspeita-se, uma questão de automatismo: uma vez que a complexa maquinaria de conscrição, do transporte, da manufatura foi posta em marcha, tornou-se demasiado difícil de parar. O empreendimento tinha sua própria lógica, para além da razão e das necessidades humanas.
[...] O que havia sido erro de cálculo e acidente incontrolável na Primeira Guerra Mundial tornou-se método na Segunda.
Campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau |
Muita coisa foi dita sobre a perplexidade e solidão do homem depois que o Céu desapareceu da crença ativa. Sabemos do vazio neutro dos céus e sabemos dos terrores que esse desaparecimento acarretou. Mas pode ser que a perda do Inferno tenha sido o deslocamento mais severo. Pode ser que a transformação do Inferno numa metáfora tenha deixado uma lacuna formidável nas coordenadas de que a mente ocidental dispõe para localização. Não ter Céu nem Inferno é ficar intoleravelmente carente e solitário em um mundo que se tornou plano. Dos dois, o Inferno demonstrou ser o mais fácil de recriar (as imagens que o reproduziram sempre foram mais detalhadas).
Inferno, de Hyeronimus Bosch |
Em nossa atual barbárie, está em ação uma teologia extinta, um corpo de referências transcendente cuja morte lenta e incompleta produziu formas substitutas, paródicas. O epílogo da crença, a passagem da fé religiosa à convenção oca, parece um processo mais perigoso daquilo que os philosophes anteviram. As estruturas da decadência são tóxicas. Precisando do Inferno, aprendemos a construí-lo e administrá-lo na terra. A pouca distância da Weimar de Goethe ou das ilhas da Grécia. [...] Ao pormos o Inferno acima da superfíkcie, saímos da ordem principal e das simetrias da civilização ocidental".
George Steiner, No Castelo do Barba Azul
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