Desde a última grande crise alimentar,
governos e empresas de nações ricas têm comprado ou arrendado terras
férteis de países em desenvolvimento, em especial na África. Benefícios
desses negócios para as populações locais? Poucos ou nenhum
Por Eduardo Araia
Em janeiro de 2009, Madagascar – ilha na costa leste da África famosa
por ser o lar dos lêmures – foi abalada por manifestações contra o
governo do presidente Marc Ravalomanana. Mais de 170 pessoas morreram
antes que ele renunciasse. Entre as malfeitorias de que o presidente era
acusado estava um negócio pelo qual o conglomerado industrial
sul-coreano Daewoo arrendaria por 99 anos 1,3 milhão de hectares de
terras malgaxes (13 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase
metade do solo arável do país e a pouco menos de 60% da área de Sergipe)
a fim de plantar milho e dendê.
Detalhes adicionais: a maior parte das
terras negociadas é "primitiva" – em outras palavras, floresta tropical
intocada – e o retorno para a população local viria apenas por meio da
criação de um limitado número de empregos na Daewoo. Uma das primeiras
medidas do novo presidente, Andry Rajoelina, foi revogar o acordo com os
sul-coreanos.
A deposição de Ravalomanana foi a faceta mais visível de um problema
derivado da crise dos alimentos de 2007/2008 que inquieta a comunidade
internacional: a compra ou arrendamento, por governos e empresas de
países ricos, de terras férteis em nações em desenvolvimento, escolhidas
em geral por serem bem abastecidas com água e estarem próximas de
portos ou outros centros de escoamento. Segundo relatórios divulgados em
2009 pela ONU e por analistas norte-americanos, ingleses e indianos,
pelo menos 30 milhões de hectares (300 mil km2, pouco mais do que a soma
dos territórios do Paraná e de Santa Catarina e equivalente a 75% de
toda a terra arável da Europa) estão sendo ou foram adquiridos no mundo
por empresários ou governantes de países que enfrentam condições
climáticas adversas ou escassez de terras cultiváveis e dispõem de muito
dinheiro em caixa, como China, Coreia do Sul, Suécia, Arábia Saudita e
Emirados Árabes Unidos.
Tendência está se acelerando
O Instituto Internacional de Pesquisa da Política de Alimentos,
baseado nos Estados Unidos, avalia que entre US$ 20 bilhões e US$ 30
bilhões são gastos anualmente por países ricos na compra de terras em
nações em desenvolvimento. E o quadro pode se agravar muito mais,
salienta Olivier De Schutter, relator especial da ONU para o Direito à
Alimentação: "[A tendência] está se acelerando rapidamente. Todos os
países observam uns aos outros e, quando um vê os outros comprando
terras, faz o mesmo."
Algumas das nações nas quais há terras para vender já têm certa
importância no contexto agrícola mundial, como Brasil, Rússia e Ucrânia.
Nesses lugares, porém, a simples procura já serve para elevar os preços
das propriedades e dificultar os negócios. A preferência dos
investidores tem recaído em países para lá de carentes, localizados
sobretudo na África, como Camarões, Etiópia, Sudão e Zâmbia.
Caracterizados pela miséria da população e por governos em geral
ditatoriais ou autoritários, nos quais a corrupção corre solta, esses
países podem assistir, no futuro, a uma situação paradoxal, antevista
pela ONU: enquanto estoques imensos de produtos agrícolas cultivados em
suas terras são embarcados para outros destinos, seus habitantes sofrem
com a fome.
O agrocolonialismo já apresenta números impressionantes. A Coreia do
Sul adquiriu 690 mil hectares no Sudão; a Arábia Saudita abocanhou 500
mil hectares na Tanzânia; os Emirados Árabes Unidos, 324 mil hectares no
Paquistão. A Índia emprestou dinheiro para 80 de suas companhias
comprarem 350 mil hectares em países africanos.
As aquisições feitas por empresas também chamam a atenção. A sueca
Alpcot Agro, por exemplo, arrematou 120 mil hectares na Rússia; a
sul-coreana Hyundai investiu US$ 6,5 milhões para conseguir participação
majoritária na Khorol Zerno, que possui 10 mil hectares na Sibéria
Oriental; o banco norte-americano Morgan Stanley adquiriu 40 mil
hectares na Ucrânia.
Crise alimentar incrementou o neocolonialismo
De Schutter observa que o movimento em busca de terras aráveis se
intensificou depois que, com a crise alimentar de 2007/2008, vários
países descobriram o severo impacto na balança de pagamentos causado
pelas importações de alimentos. O quadro os levou, então, a trabalhar
para "se garantir". Mas isso, segundo o representante da ONU, funciona
como especulação, aposta em preços futuros, já que a população mundial
deve crescer cerca de 50% até 2050, e certamente precisará se alimentar.
"Sabemos que a volatilidade crescerá nos próximos anos", afirma De
Schutter. "Os preços das terras continuarão a subir."
Ele acrescenta que aproximadamente 20% dessas compras devem ser
destinadas ao cultivo de vegetais para biocombustíveis. "Mas é
impossível saber ao certo, porque as declarações não são feitas com
relação a quais plantas serão cultivadas", declarou.
Mais grave do que isso é a perspectiva de que os novos donos e
arrendatários das terras usem-nas de maneira insustentável. "A
terceirização da produção agrícola garantirá segurança alimentar para os
países investidores, mas deixará atrás de si um rastro de fome,
inanição e escassez alimentar para as populações locais", afirmou
Devinder Sharma, analista do Fórum de Biotecnologia e Segurança
Alimentar na Índia. "A conta ambiental da agricultura altamente
intensiva – solos devastados, aquíferos secos e ecologia arruinada por
infestações químicas – será deixada para o país anfitrião pagar."
Um relatório divulgado em 2009 pelo Instituto Internacional de
Ambiente e Desenvolvimento, baseado em Londres, apresenta os negócios
com terras como fontes de "riscos e oportunidades". Os autores ponderam:
"Investimentos ampliados podem trazer benefícios tais como o
crescimento do Produto Interno Bruto e receitas governamentais mais
robustas, e podem criar oportunidades para o desenvolvimento econômico e
melhora no padrão de vida. Mas podem resultar na perda de acesso dos
habitantes locais aos recursos dos quais dependem para sua segurança
alimentar – particularmente enquanto alguns países-chave que receberão
os alimentos estão, eles próprios, às voltas com seus desafios de
segurança alimentar."
Uma saída para isso seria os países que cedem suas terras optarem por
contratos de produção. Nesses casos, os investidores estrangeiros
entrariam com a tecnologia e o capital, enquanto os agricultores locais,
cultivando terras próprias ou arrendadas, produziriam grãos ou outros
vegetais a preços fixos. Mas essa fórmula, defendida por especialistas
como De Schutter e Jean-Philippe Audinet, do Fundo Internacional para o
Desenvolvimento da Agricultura (Ifad), não interessa aos novos
investidores. Os planos destes, no geral, são bem claros: além de
segurança, controle absoluto do meio produtivo e grandes margens de
lucro. Para os habitantes locais, nada ou migalhas. Como se vê, o
espírito colonialista do homem não desapareceu no século 20 – só havia
entrado em estado de hibernação.
TRANSAÇÕES NEBULOSAS
Alguns dos negócios com terras acertados nos últimos anos
País cessor País investidor Terras cedidas (em hectares)
Camboja Kuwait 130.000
Filipinas Bahrein 10.000
Filipinas Coreia do Sul 94.000
Sudão Jordânia 25.000
Paquistão Emirados Árabes Unidos 324.000
Quênia Catar 40.000
Tanzânia Arábia Saudita 500.000
Sudão Coreia do Sul 690.000
Sudão Jordânia 25.000
Tanzânia Arábia Saudita 500.000
Uganda Egito 840.000
Fontes: International Food Policy Research Institute (IFPRI), Der Spiegel
ENTRE A FARTURA E A MISÉRIA
O Sudão vive um estado de guerra civil há anos e é governado por um
ditador condenado pelo Tribunal Penal Internacional, mas a instabilidade
decorrente disso não assusta os investidores agrícolas. O maior país da
África em área já negociou 1,5 milhão de hectares de terras férteis
para a Coreia do Sul, o Egito e os Emirados Árabes Unidos por 99 anos.
Enquanto isso, porém, o Sudão aparece como o maior recebedor mundial de
ajuda internacional – 5,6 milhões de seus cidadãos dependem do envio de
alimentos.
GENEROSIDADE A PERDER DE VISTA
Negociações envolvendo um patrimônio tão importante quanto as terras
férteis de um país deveriam, supostamente, estar cercadas de cuidados e
precauções. Não é essa a aparência transmitida por declarações e atos de
autoridades de alguns dos países que põem áreas de cultivo à disposição
do mercado pós-crise alimentar de 2007/2008. Há alguns anos, o
primeiro-ministro da Etiópia declarou que seu governo estava "ansioso"
para oferecer acesso a centenas de milhares de terras agrícolas. Em meio
a uma guerra com o Taleban, o Paquistão ofereceu milhares de hectares a
xeques dos Emirados Árabes Unidos, prometendo aos interessados redução
de impostos, isenção de leis trabalhistas e o envio de 100 mil membros
de suas forças de segurança para proteger as propriedades de
estrangeiros.
Em sua busca frenética por investidores, países africanos têm baixado
os preços de suas terras em relação à concorrência, assinala Olivier De
Schutter, relator especial da ONU para o Direito à Alimentação. Segundo
ele, alguns contratos que envolvem centenas de milhares de hectares de
terra mal chegam a três páginas de extensão. Embora mencionem os
produtos a serem cultivados, o local e o preço da compra ou
arrendamento, tais acordos não tratam de nenhuma norma ambiental, de
investimentos necessários em contrapartida ou da criação de empregos.
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